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Teus mundo não cabe nos meus olhos: Um romance inconsistente sobre a cegueira

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Vitório (Edson Celulari) é dono de uma das pizzarias mais famosas do tradicional bairro do Bixiga, em São Paulo. Cego, seu grande segredo é conseguir “ver” a massa da pizza por dentro. Todo esse charme em torno da tradição de sua pizza conta também com a herança de talento de seu pai, o italiano fundador do tal restaurante. O ambiente tão aconchegante é também a residência da família de Vitório. Com ele vivem sua esposa Clarice (Soledad Villamil), uma argentina que largou a faculdade e todos os seus sonhos para ajudar Vitório diante de suas limitações visuais, e sua filha Alicia (Giovana Echeverria), uma jovem inquieta com a sua rotina de ajuda a família, especialmente ao pai, que está louca para ir estudar nos Estados Unidos.

Além deles, o funcionário único da pizzaria, o gaúcho Cleomar, vive num quartinho nos fundos. A vida de Vitório parece ótima, independentemente de sua limitação física. Eis que surge a possibilidade de uma cirurgia inovadora, que pode trazer de volta a visão de Vitório. Algo que mudaria a vida de todos que o cercam, além de possibilitar que ele possa desfrutar de tudo o que a visão pode lhe oferecer, como ver o rosto de sua esposa e sua filha, uma vez que ele vive com a cegueira desde ainda bem criança.Acostumado a viver desta forma, Vitório se questiona se vale a pena nesse momento da vida, mudar algo com o qual ele já convive bem. Esta decisão basicamente mudará o rumo de sua vida e dos que o cercam.

Teu mundo não cabe nos meus olhos trata de um tema que já foi tratado da mesma forma por outras obras, como  À Primeira Vista de 1999 com Val Kilmer e o mais recente Por trás de seus olhos, de 2018. Essas referências soariam como elogio, até. Mas não é o caso pois o filme de Paulo Nascimento tem vários pontos a serem questionados, desde o título, passando por desenvolvimento de trama, chegando ao desfecho e a mensagem que ele transmite.  O filme poderia ser muito melhor trabalhado, mesmo sob um roteiro já visto.

Teu mundo não cabe nos meus olhos sugere claramente um conflito, entre o possuidor da cegueira e o mundo lá fora. Sendo assim, sem se esforçar muito, você já consegue desenhar a trama toda lendo apenas a sinopse. O roteiro é batido, tendo sido inspirado ou não em outras obras. A história de um cego que pode voltar a enxergar e tem um conflito interno quanto a isso.

Antes de ir para o plot, gostaria de mencionar a construção do protagonista. Um pizzaiolo filho de italianos, de nome Vitório, apaixonado por futebol. Se você fosse tentar adivinhar o time para qual ele torce, diria o que? Palmeiras, né? O Palestra Itália. Mas não, Vitório é Corintiano roxo. Ok, até aí tudo bem. Um descendente de italianos pode ser Corintiano. Pode. Mas eles construíram um Corintiano dentro de uma carcaça de Palmeirense. Além disso, o sotaque de Vitório é mal trabalhado. Em alguns momentos ele apresenta aquele “paulista-italiano” meio cantado, usando termos que remetem à sua descendência. Em outros momentos ele simplesmente esquece disso, e perde o sotaque. Isso fica bem nítido.

Indo mais a íntimo de Vitório, ao mesmo tempo que ele parece ser um homem de família, grato e carinhoso, ele se demonstra completamente egoísta e frio, ignorando a felicidade de todos que o cercam e só dando importância à sua rotina. Talvez essa fosse a intenção do diretor. Criar um personagem egoísta. Mas como ele trata da sensibilidade de quem sofre com as limitações visuais, com a cegueira completa, sugere-se que ele seja mais sensível também em sua personalidade. Do contrário. É um cara durão. Aparentemente pouco grato as pessoas que vivem em função de ajudá-lo.  Sua esposa, devota e carinhosa, logo se vê sozinha na tentativa de melhorar a vida do marido e se vê infeliz em ter abdicado de sua própria vida para ajudá-lo. Ele, no entanto, parece ser mais feliz na companhia do seu garçom e amigo Cleomar. Parece confuso. Fica nítido que não se sabe o que se quer transmitir através de Vitório.

Sobra inconsistências, algumas cenas beiram a fuga da realidade. Dois jovens assaltam a pizzaria num momento em que o Vitório está sozinho. Dois ladrões que fogem ao estereótipo, mais parecem os bandidos de Esqueceram de Mim, entram na pizzaria, roubam o caixa, algumas garrafas de vinho, e debocham de Vitório, ao verem que ele é cego. Do nada, o deboche vira agressividade, e um dos assaltantes vocifera: “Só não te arrebento a cara porque você é um aleijado”. Eles já haviam entrado, roubado tudo, estavam saindo, sem sofrerem resistência alguma da vítima, totalmente inofensiva. Não justifica em nada a fala do ladrão, soa totalmente fora do contexto. Além do quê, esta mesma cena de assalto não parece nada com um assalto real. Beira o constrangimento.

Outra inconsistência bem notória. Vitório é apaixonado por futebol e pelo Corinthians. De ir ao estádio, ouvir rádio e pedir pra filha ler notícias esportivas no jornal. Quando ele realiza a operação e volta a enxergar, o filme demora muito para citar a sua paixão pelo futebol e pelo Corinthians. Numa cena que ele está vendo TV, nada de relevante passa na tela, e ele pouco se importa. Poderia muito bem ser um jogo de futebol. Até que em muito tempo depois, parece que o diretor lembra de tal fato e “providencia” uma ida dele ao estádio. Ao meu ver, esta deveria ser uma das primeiras coisas que ele gostaria de fazer ao começar a enxergar. Ver sua maior paixão de perto. Se olhar no espelho também, deveria ser uma das primeiras cenas. E não foi. Só no fim do filme há esta cena.

Com relação as atuações. Com todo respeito à história de Edson Celulari na televisão e no cinema nacional, acho a interpretação de um cego, fraca. Fora a inconsistência no sotaque e na entonação. Parece em alguns momentos que ele está lendo o roteiro com a folha nas mãos. A única atuação razoável é a de Solledad Villamil, imprimindo alguma emoção à Clarice.

A mensagem final provavelmente intenciona mostrar que mesmo quem não tem a visão, pode enxergar e viver uma vida feliz, talvez mais de quem enxerga de fato. Mas isso é passado de um jeito muito inconsistente. E uma coisa que me incomoda muito. É comprovado que os cegos tem os outros sentidos aguçados. Mas este romantismo de que os cegos preferem permanecer cegos do que enxergar é difícil de vender para o mundo real. Eu tento fazer o raciocínio com um paralelo a uma outra limitação física, como a situação de um paralítico por exemplo. Dificilmente você irá ver um paralítico que voltou a andar, querendo voltar a cadeira de rodas. Tampouco um surdo que começa a ouvir o Mundo, querer voltar ao silêncio total. Me pergunto porque com os cegos seria diferente? Mas só um cego poderia responder a esta questão.

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