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O GRANDE CIRCO MÍSTICO: UM RETALHO DE CONTOS MAL COSTURADOS

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Cacá Diegues é, indiscutivelmente, um dos maiores cineastas do Brasil, tendo alcançado reconhecimento internacional com filmes como Xica da Silva (1976) e Bye Bye Brasil (1979). Logo, quando foi anunciada a produção de um novo longa do diretor alagoano, a criação de expectativa por parte do público e da mídia foi incontrolável – ainda mais depois que O Grande Circo Místico foi anunciado como o escolhido do Brasil para concorrer a uma vaga na categoria de Melhor Filme Estrangeiro na cerimônia de 2019 do Oscar. A obra se trata de uma adaptação do poema homônimo de 47 versos presente no livro “A Túnica Inconsútil” (1938), de Jorge de Lima, e acompanha cinco gerações da família Knieps, dona do circo que dá nome ao enredo, ao longo de 100 anos, a partir de 1910.

A saga da trupe familiar tem início quando Fred Knieps (Rafael Lozano), um aristocrata de origem austríaca, compra um circo para agradar a amada, Beatriz (Bruna Linzmeyer), uma contorcionista. Assim, surge a primeira geração d’O Grande Circo Místico, sucedida por Charlotte (Marina Provenzzan), filha do casal, e o mágico francês Jean Paul (Vincent Cassel), em 1934; os descendentes destes, Clara (Flora Diegues) e Oto (Juliano Cazarré), nos anos 60; Margarete (Mariana Ximenes), filha de Oto, a partir de 1986, seguida de Maria (Amanda Brito) e Helena (Louise Britto), suas filhas gêmeas, no século XXI. A única personagem que perpassa todas as gerações da família circense é Celavi (Jesuíta Barbosa), o mestre de cerimônias, que não é afetado pela passagem do tempo.

Assim, percebe-se de imediato que a intenção de Diegues é retratar o amor pela arte, os bastidores do circo e a sua inevitável decadência como uma fábula, flertando com o realismo fantástico em diversos momentos. Nota-se também o sub-texto sobre a perda da fantasia, da inocência e do otimismo, elementos que levavam as pessoas até este tipo de espetáculo – aliás, essas temáticas não são novidade na filmografia de Diegues, um eterno otimista confesso. A premissa potencialmente encantadora de levar para o cinema a magia do circo e todos os seus elementos teatrais e musicais, no entanto, resulta em um produto inconsistente, desengonçado e desencaixado dentro da própria proposta, além de ser salpicado por momentos constrangedores – ou seja, simplesmente decepcionante.

E estas falhas se apresentam logo no começo do longa devido a montagem instável, a qual torna as primeira cenas fragmentadas – e, por outro lado, há momentos que são esticados além do necessário, prejudicando ainda mais o andamento da trama, especialmente a última cena, a qual destoam totalmente do resto. Mas quem dera este fosse o único problema do filme, que também é afetado pela estrutura episódica de seu roteiro, o qual não desenvolve suas personagens, que são introduzidas da história para cumprir uma função específica em um conflito e saem de cena tão unilaterais quanto quando entraram – talvez, a única exceção seja Margarete, que possui algum arco dramático -; a produção parece não entender que envelhecer uma personagem não é o mesmo que desenvolvê-la. O que leva a outros dois pontos problemáticos.

O primeiro é o perfil dos tipos que povoam a trama; todos são simplesmente estereótipos – a virgem religiosa, o machista inescrupuloso, o burlesco poético, a viciada e por aí vai. E o segundo é o fato de os mesmos atores interpretarem suas personagens em diferentes fases da vida; a caracterização das personagens na velhice não é muito crível, assim como as interpretações – talvez, quem se sai melhor neste aspecto é Juliano Cazarré, que consegue imprimir um pouco mais de maturidade e o peso da idade em Oto, mas, de resto, são apenas atores jovens fantasiados de velhos e mesmo que, teoricamente, o gênero fábula “permita tudo”, isso atrapalha bastante o investimento do público na história, assim como a quantidade considerável de atores coadjuvantes fracos, os quais recitam um texto claramente decorado.

Além disso, a produção ainda ressalta uma questão que costuma gerar polêmica. Cacá Diegues, de 78 anos, foi um dos fundadores do Cinema Novo, movimento cinematográfico que esteve em atividade no Brasil nas décadas de 60 e 70, ou seja, ele é um representante – notório – de outra época, o que faz com que alguns temas – e, principalmente, a forma como eles são abordados – sejam um tanto quanto perturbadores, desconcertantes e até um pouco revoltantes se analisados por uma ótica atual. Por mais que o diretor alegue que as personagens femininas da trama são fortes, o roteiro – escrito por George Moura com colaboração com Diegues – e a direção as objetificam do começo ao fim, colocando-as em posição de estarem a serviço do prazer e da vontade dos homens.

E ainda há a questão da banalização – e até romantização – da violência, uma vez que os conflitos unidimensionais que marcam a trama envolvem estupro, incesto, venda de seres humanos, exposição sexual de um homem adulto para uma adolescente, suicídio e assassinato, temas delicados e polêmicos que o cineasta trata com uma inquietante normalidade, como se dissesse “é assim mesmo” – ou “c’est la vie”, frase repetida diversas vezes ao longa da uma hora e 46 minutos de duração do filme. E isso explicita a visão um tanto retrógrada e a abordagem datada, antiquada, quase anacrônica, do realizador, que não vê a necessidade de um posicionamento crítico ou, no mínimo, cuidadoso, deixando, por exemplo, a impressão de que não há nada demais no fato de a violência sexual ter sido uma das principais formas de dar continuidade àquela família. E, na atual conjuntura, este aspecto deixa a produção extremamente deslocada.

Mas, apesar da quantidade surpreendente de falhas, O Grande Circo Místico acumula alguns acertos, é necessário dizer. O design de produção colorido que capta elementos de cada época chama a atenção, assim como a cinematografia vívida e teatral de Gustavo Hadba – é inegável que se trata de um filme visualmente lindo. E a direção de Diegues apresenta alguns planos e soluções criativos e interessantes, como para a passagem de tempo durante a gravidez de Lily Braun (Luiza Mariani) – aquela mesma da música, e para as cenas envolvendo acrobacias. Além disso, mesmo com a gigantesca limitação do roteiro, alguns nomes do elenco conseguem se destacar: Bruna Linzmeyer sempre consegue ser hipnótica se tiver um diálogo mais ácido em mãos; Mariana Ximenes faz o melhor que pode para injetar alguma densidade dramática ao material raso que lhe foi dado.

No entanto, Jesuíta Barbosa é o que mais tem meios de trabalho devido à natureza alegórica do espirituoso Celavi – que pode ser encarado como uma representação do próprio circo ou como a personificação de seu nome -, ao texto que exibe pitadas de picardia e melancolia e à caracterização, a qual, a cada geração, agregue ao visual do mestre de cerimônia elementos de personalidades icônicas da época que está vivendo, como Charlie Chaplin, Jimi Hendrix e Michel Jackson, o que faz com que, mesmo sem desenvolvimento como os outros, Celavi seja a melhor personagem desta produção frágil.
Assim, apesar da expectativa gerada – o que é sempre um fator perigoso, é verdade -, “O Grande Circo Místico” é um filme de estruturas falhas, um roteiro problemático e truncado, recheado com sexo, violência e tragédias e mais tragédias em uma mistura de uma péssima adaptação de Nelson Rodrigues com elementos novelescos tais quais casamentos, mortes e nascimentos – como se isso bastasse para levar a trama adiante, esquecendo-se da necessidade de desenvolver suas personagens, as quais nem chegam a computar na história de tão rápidas que são suas aparições, o que faz com que, ao mostrar o circo se deteriorando, assim como a família, o público não consiga se importar realmente com aquelas pessoas.

Desta forma, trata-se de uma produção de tom inconsistente, o qual vacila entre o lirismo teatral e momentos de humor imaturo, e valoriza muito a estética, apoiando-se no impacto visual e na trilha sonora de Chico Buarque e Edu Lobo composta por clássicos da MPB, o que resulta em um filme que pretende falar sobre o circo, mas não apresenta qualquer afeição à arte circense – nem por meio da disposição dos artistas em enfrentar dificuldades como falta de público ou rotina de treinos -; pretende ser uma história de realismo fantástico, mas oscila indecisamente entre o realismo/naturalismo e o fabuloso.
Ou seja, por fim, ele pretende ser tantas coisas, que acaba sendo nenhuma delas, tornado-se apenas um retalho de contos mal costurados – o que, principalmente após os comentários negativos de publicações internacionais como The Hollywood Reporter, Screen International e Variety depois da exibição em Cannes, fez o público que assistiu ao longa no Festival do Rio, no qual foi o filme de encerramento em uma sessão lotada, chegasse à conclusão, entre palmas indecisas e constrangidas, que esta não era, nem de longe, a melhor opção para tentar, mais uma vez, garantir uma vaga no Oscar.

 

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