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O ÓDIO QUE VOCÊ SEMEIA: UM EXCEPCIONAL RETRATO DA AMEAÇA À NEGRITUDE

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“THUG LIFE” é uma expressão que se tornou muito popular no mundo inteiro, inclusive no Brasil. Em situações como essa, é comum que o significado original se perca em meio a tanta reprodução irrefletida que transforma uma ideia em uma simples palavra, como uma espécie de processo de “ordinarização” inconsciente. Contudo, o termo retornou à sua forma original – The Hate U Give Little Infants F**** Everybody (ou O Ódio Que Você Dá Às Crianças F*** Todo Mundo, em tradução livre para o português) – graças a mais uma união entre literatura e cinema: a adaptação do best-seller “O Ódio Que Você Semeia”, escrito por Angie Thomas, que mostra como a negritude, apesar de não ser uma ameaça, é constantemente ameaçada.

A trama acompanha a adolescente Starr Carter (Amandla Stenberg), de 16 anos, que vive com os pais, Maverick (Russel Hornsby) e Lisa (Regina Hall), e os irmãos, Seven (Lamar Johnson) e Sekani (TJ Wright), em Garden Heights, um bairro periférico que enfrenta há muitos anos problemas com violência e tráfico de drogas devido ao controle que King (Anthony Mackie) e sua gangue exercem sobre a região. Big Mav, como é conhecido o patriarca da família, é ex-membro do bando e uma figura conhecida e querida pela comunidade, com um forte senso de pertencimento que o faz acreditar que o local pode melhorar, e, portanto, recusa-se a deixa-lo.

Porém, o homem tem consciência da situação atual do lugar, então, os três irmãos frequentam a Williamson, uma escola em outro bairro, povoado por pessoas ricas e brancas – parte desta decisão também se deve a uma imposição de Lisa -, a fim de se prepararem, de fato, para entrar em uma universidade. Assim, Starr – que narra a história – se divide em duas “versões” de si mesma. A que estuda com jovens brancos abastados “não dá nenhum motivo para que a chamem de favelada” – fato odiado por ela -; já a que sai com pessoas de seu bairro pode ser mais relaxada, sem precisar agir como os brancos esperam que uma pessoa negra aja para ser aceita. Mas a verdade é que ela não se sente totalmente confortável em nenhum dos dois papéis.

Assim, após fugir de uma festa em Garden Heights com o amigo de infância Khalil (Algee Smith), Starr vê sua vida estável ser abalada e ameaçada ao testemunhar o rapaz ser morto por um policial branco que confundiu uma escova de cabelo com uma arma, o que inicia uma série de conflitos na região que logo ganham repercussão nacional, fazendo com que a garota tenha que escolher entre ficar calada e tentar seguir sua vida – uma vez que ela não aparece nas filmagens do evento – ou depor para um grande júri a fim de levar o responsável pela morte do amigo a julgamento, mesmo que isso implique um embate com os Kings, que não gostam de ter todos os olhos do país voltados para seu território, e com a polícia local, a qual não gosta da ideia de ter um dos seus correndo o risco de ter que enfrentar um tribunal devido ao testemunho de uma garota negra e pobre.

Partindo desta premissa de enorme potencial, o longa já começa com um verdadeiro tapa na cara do público ao mostrar, na primeira cena, Maverick ensinando Starr e Seven, ainda crianças, como agir caso sejam parados pela polícia; trata-se de uma cena forte que, imediatamente, puxa o espectador para o universo das personagens – e este é apenas o primeiro de muitos choques de realidade que o filme dá em sua audiência. E muito deste impacto inicial se deve à atuação fortíssima de Russel Hornsby, que consegue dar muita humanidade a um homem que, por força das circunstâncias, vê-se obrigado a ser dur com os filhos pelo próprio bem deles.

Aliás, todos os atores estão impecáveis em seus respectivos papéis. Regina Hall, mais conhecida por seu trabalho em comédias – sua personagem mais famosa é a icônica Brenda, da franquia “Todo Mundo Em Pânico” -, entrega uma consistente interpretação dramática na pele de uma mãe que, apesar de compreender o conflito que sua comunidade está vivendo e concordar que algo deve ser feito em relação a isso, sempre coloca a segurança da família em primeiro lugar. E o elenco ainda conta com outros nomes famosos como Issa Rae, que interpreta a advogada April Ofrah, a qual tenta convencer Starr a dar seu depoimento; Common, que dá vida ao policial Carlos, irmão de Maverick – com quem tem uma relação complicada -, que sente um carinho quase paternal pela sobrinha; e Anthony Mackie, que consegue passar a sensação de ameaça real na pele do traficante King.

E as interpretações são elevadas pelo roteiro sagaz e retumbante de Audrey Wells, o qual traz à tona diversas discussões que vão além da violência e da brutalidade policial contra a população negra, como o duplo padrão para negros e brancos, o tom quase satírico com que demonstra o fato de a cultura negra estar na moda desde que não seja exercida por negros, o pré julgamento e a culpabilização da vítima, e o modo como trata o estereótipo do “Negro Inofensivo” em uma excelente e impactante cena entre Starr e Hailey (Sabrina Carpenter), uma das amigas brancas da garota, uma personagem irritantemente ignorante e hipócrita. A propósito, a performance de Amandla Stenberg é a que mais se destaca no longa.

A jovem atriz, conhecida por ter interpretado a fan favorite Rue, da franquia “Jogos Vorazes”, entrega uma atuação digna de nota, demonstrando uma impressionante densidade dramática, transitando entre emoções que vão da tristeza à raiva, passando pelo medo e pela indignação, com extrema facilidade. Stenberg ainda desenvolve uma boa parceria com KJ Apa, que interpreta Chris, o namorado branco de Starr, o qual quer estar ao lado da garota mas não compreende a situação pela qual ela está passando, uma vez que questões raciais estão muito distantes da realidade dele. Mesmo assim, o rapaz demonstra disposição para tentar entender e ajudar, o que desperta a simpatia do público.

Assim, este é um filme que emociona, irrita, indigna, instiga, impacta e, em alguns momentos, diverte o espectador, tratando de forma por vezes forte, por vezes delicada um tema extremamente atual, utilizando-se das mais variadas referências, as quais vão de Tupac – a principal inspiração do livro – a “Harry Potter”, e, acima de tudo, sem subestimar a inteligência do público, independente da idade ou da cor da pele. A produção também mostra o talento do diretor George Tillman Jr., que, após alguns longas irrelevantes como “Rápida Vingança” e “Uma Longa Jornada”, tinha como ápice de seu trabalho a direção de dois episódios da aclamada série “This Is Us” – não mais. Esta união de fatores favoráveis faz de O Ódio Que Você Semeia uma produção avassaladora do começo ao fim – chegando a causar reações físicas no espectador em diversos momentos ­-, mas, acima de tudo, trata-se de um filme necessário, que deveria ser assistido por todos, principalmente por aqueles que alegam que questões raciais e a violência racista não passam de “mimimi” e que os negros estão “exagerando” ao lutar por justiça e igualdade – o que, nem sempre pode ser feito de forma pacífica, pois, como é dito em cena, “é impossível estar desarmado quando a negritude é a arma que eles temem”.

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