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SIMONAL: A QUEDA DO PRIMEIRO POPSTAR NEGRO DO BRASIL

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Se tem um gênero cinematográfico que nunca sai de moda é, sem dúvida alguma, a biografia; seja de famosos ou anônimos, o fato é que alguém sempre tem uma história boa para ser contada. E o mais recente exemplo deste filão no cinema brasileiro é o longa Simonal, que, apesar de seguir basicamente a estrutura clássica deste estilo de filme – ascensão, queda e redenção -, adota uma abordagem diferente da tradicional, focando na razão pela qual um ídolo nacional passou a ser execrado pelo público, recebendo o perdão e voltando ao sucesso apenas após sua morte. Dirigido por Leonardo Domingues, o próprio filme se define como “uma história da música brasileira na época da ditadura”, indicando que o regime militar foi um fator importante na derrocada do astro. Assim, o longa já começa com um suntuoso plano-sequência que acompanha Laura Figueiredo (Mariana Lima), “a mulher com mais contatos do Rio de Janeiro”, chegando a um misterioso evento que reuniu toda a classe artística na capital carioca em 1975. Quando, por fim, é revelado aos presentes que se trata de um show de Wilson Simonal (Fabrício Boliveira), imediatamente as vais e os gritos de “traidor” se misturam aos primeiros versos da canção. Criadas a expectativa e tensão, o público é puxado para dentro da história, que, então, volta 15 anos para explicar o por quê de tanta animosidade por parte da plateia.

A partir disso, cada passagem de tempo que aborda uma fase da trajetória do cantor é marcada com a inserção de cartelas, como episódios seriados, sendo o primeiro deles o período em que o então desconhecido aspirante a músico participava do grupo Dry Boys, o qual se apresentava em pequenos eventos no começo da década de 60. E esta primeira cena do retorno ao começo da carreira de Simonal já demonstra a personalidade inconformista e malandra dele, que, ao ouvir de seu colega de banda, Marcos Moran (Silvio Guindane), após o show em um clube de elite, que os músicos não podiam entrar na piscina, “ainda mais um crioulo”, o cantor se despe, ficando apenas de cueca e se joga na água. Neste momento, também é destacada sua preferência por mulheres loiras, e é exatamente este fator que o aproxima de Tereza (Isis Valverde), que, na época, tinha um affair com Carlos Imperial (Leandro Hassum), figura histórica da música brasileira, para quem Simonal começa a trabalhar como assistente – ocupando a vaga deixada por Erasmo
Carlos – depois de se destacar em uma gravação dos Dry Boys.

A aproximação com grandes nomes da cena artística brasileira faz Simonal deixar o grupo para tentar carreira solo enquanto inicia um relacionamento com Tereza segue fazendo apresentações sozinho. E é durante um desses pequenos shows – em um evento chamado “Noite Russa”, na qual o cantor se destaca não apenas por suas voz e presença de palco, mas também por ser um homem negro fantasiado de cossaco – que ele chama a atenção de Miele (João Velho), que o convida para se apresentar no Beco das Garrafas, onde tem início a ascensão do artista, que logo grava seu primeiro disco. Neste momento, entra em cena um dos maiores trunfos da produção: a montagem muito criativa que serve à história quase como uma personagem à parte. A cada passo de Simonal em direção à fama, cartelas, imagens de arquivo, filmagens de shows e manchetes da época surgem na tela, dando ainda mais dinamismo à trama, a qual, desde o começo, apresenta um ritmo muito bom e coeso – a adição destes elementos estimula o público a se engajar no enredo mais do que já estava.

O roteiro, escrito por Domingues e Victor Atherino é preciso – ágil sem ser apressado, adotando o ritmo certo para desenvolver sua história e suas personagens, incluindo discussões que ajudam o público a compreender a personalidade do protagonista, o qual é munido de uma crescente arrogância como forma de lidar com o racismo velado que sofre em situações como, por exemplo, quando um jornalista aponta o fato de o cantor ter três carros importados em casa, questionando se isso não seria uma atitude exibicionista, sendo ele um “homem de cor”. Além disso, outro acerto da produção é o desenvolvimento de Tereza; não é incomum que em cinebiografias protagonizadas por homens, as mulheres tenham como única função estar ao lado do marido e ser o apoio moral dele, no entanto, aqui, a personagem tem um arco próprio, mesmo sendo uma subtrama.

Assim, o roteiro se desenrola progressivamente até chegar a pontos como o questionamento acerca do tipo de música cantada por Simonal, que apesar de nunca ter se envolvido com política, era um dos maiores ícones dos anos 70, mas, enquanto outros artistas de renome gravavam composições contra a ditadura, ele estava “cantando ‘País Tropical'” – fato ressaltado e questionado em uma excelente cena de reencontro entre o cantor e Moran. Contudo, a despeito de sua alienação política, o roteiro destaca a consciência de Simonal sobre a negritude e os efeitos sofridos por ela em um país que, na época, acreditava no mito da Democracia Racial – e é exatamente esta noção, somada à sua admiração por Martin Luther King, sua arrogância e irresponsabilidade financeira que faz o músico ir de ídolo nacional a inimigo #1 do público. Aliás, o longa faz um excelente trabalho ao mostrar o papel do racismo da queda do cantor – afinal, o público e a mídia também “viraram a cara” para Elis (que aparece brevemente no terceiro ato) após uma acusação injusta, mas por que ela foi perdoada e Simonal não foi?

Outro aspecto que valoriza a produção é a direção apurada de Leonardo Domingues, que ostenta suas personagens – em especial, seu protagonista, obviamente -, seguindo-as com certo olhar de idolatria nostálgica – perspectiva destacada, principalmente, em precisos e elegantes planos-sequência em momentos-chave do longa. E este olhar do diretor eleva ainda mais as atuações do elenco, o qual não possui nenhum elo fraco. É claro que o destaque é de Fabrício Boliveira, que, apesar de não ser parecido com Simonal, ao surgir na pele do músico, nunca esteve tão bem em cena. O ator apresenta uma ótima construção de personagem, exibindo com naturalidade os trejeitos e o tom de voz do cantor – inclusive, mudando suas feições para se assemelhar mais ao biografado -, além de se sair bem nas cenas em que dubla as músicas de Simonal.

Quem também entrega uma atuação digna de nota é Isis Valverdade, que demonstra ter chegado à sua maturidade artística, trabalhando diferentes níveis e matizes de emoções, indo, gradualmente, da vivacidade juvenil à amargura de forma absolutamente crível. Além deles, outros nomes conhecidos também estão muito bem, mesmo em papéis com menos tempo de tela, como Mariana Lima – como sempre, impecável, destacando-se em todas as cenas em que aparece -, Caco Ciocler – que sabe dar vida a uma personagem odiosa como poucos -, Silvio Guindane – que, apesar de ser mais conhecido por seus trabalhos cômicos, mostra-se muito seguro em cenas dramáticas – e Leandro Hassum – que, interpretando Carlos Imperial, conseguiu se afastar da própria figura e evitar cair na caricatura mesmo mantendo sua veia cômica.

Com isso, Simonal é, sem dúvidas, uma produção que se destaca no cenário nacional pela união de todos os aspectos que a compõem. A direção é certeira, a reconstituição de época é impressionantemente precisa banhando o público com uma lustrosa nostalgia, o figurino – de Kika Lopes – é um show à parte, as atuações dispensam comentários, a trilha sonora repleta de clássicos da MPB quase exige que a audiência cante junto, a cinematografia exibe uma aura saudosista que traga quem está assistindo para os anos 60 e 70, e o roteiro, eficiente e bem-acabado – apesar de ter de recorrer a alguns breves momentos de exposição para, por exemplo, explicar para o espectador mais jovem a importância de Carlos Imperial no meio musical brasileiro -, felizmente, não comete o maior e mais comum erro das cinebiografias brasileiras: o excesso de condescendência com o biografado – mal que acometeu o aguardado “Elis”, por exemplo. Ou seja, trata-se de um longa biográfico que busca absolver de uma acusação controversa sem negar ou esconder os defeitos de seu protagonista, um ídolo que foi destruído pela arrogância e pelo racismo, tornando-se um “exilado dentro do próprio país”.

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