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Duas Rainhas: Entre a Rivalidade e a Sororidade

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Do século XVI ao século XXI, o tabu continua o mesmo: mulheres em posição de poder. Sempre que isso acontece, há um movimento para tentar derrubá-las. E, por muito tempo, o método utilizado era o velho ditado “dividir para conquistar” – exatamente o que é mostrado no longa épico Duas Rainhas. O debut da diretora teatral Josie Rourke no cinema conta a história da rivalidade – criada e incentivada por homens – entre Mary Stuart, rainha da Escócia, e Elizabeth I, rainha da Inglaterra, o que pôs as duas nações em guerra – literal e metaforicamente – por vários anos. Este enredo já é conhecido por boa parte dos espectadores, sejam eles amantes de história ou fãs de séries épicas como “Reign”, que segue esta mesma narrativa, mas sem o impacto presente na produção cinematográfica.

Baseado no livro “Queen of Scots: The True Life of Mary Stuart”, de John Guy, o longa começa com o retorno de Mary (SaoIrse Ronan) à sua terra natal após a morte de seu marido, Francis II, rei da França. Sua chegada é marcada pelo que ela representa, uma vez que, desde seu nascimento, ela teria direito aos tronos da Escócia e da Inglaterra e pretende reclamar ambos. No entanto, há o primeiro obstáculo: a jovem rainha é uma devota católica, enquanto as duas nações são quase inteiramente protestantes. Com isso, surge a pressão para que Mary se case com um homem designado pela corte masculina que a cerca para que seu marido assuma o trono.

Além disso, há o segundo obstáculo: sua prima, Elizabeth I (Margot Robbie), protestante e rainha da Inglaterra, que não pretende abrir mão de seu reinado. Porém, para que a monarca inglesa possa manter a coroa sem que Mary consiga destroná-la mesmo com o direito que a linhagem sanguínea lhe confere, ela teria que se casar e gerar um herdeiro – opção repudiada por Elizabeth, pois ela sabe que perderia o poder para seu marido de qualquer forma, além da impossibilidade de engravidar, sendo este um dos principais elementos dramáticos do arco da personagem. E, neste contexto, os conselheiros dos dois reinos começam a incentivar uma rivalidade e uma guerra entre as duas rainhas.

E, como se não bastasse essa crise externa, Mary ainda tem que lidar com problemas internos, uma vez que sua corte – assim como a de Elizabeth -, é manipuladora, não confiável e misógina, e ainda há os pretendentes ambiciosos – pois um homem só conseguiria ser rei por meio de matrimônio ou de um golpe – e a escandalosa figura de John Knox (David Tennant), um pastor protestante que, após um embate contra a rainha no qual ela se impôs diante de um conselho formado estritamente por homens, passa a inflamar a população contra “a meretriz”, expondo o seu machismo em frases como “temos uma maldição em nossa terra: uma mulher com uma coroa”. Assim, além da corte mal intencionada – de ambos os reinos -, Mary ainda tem que enfrentar os próprios súditos, que passam a rejeitá-la como rainha.

Com isso, vê-se que esta é uma trama densa e dramática, aspectos que casam perfeitamente com a aura teatral da direção de Rourke, que traz influências shakespearianas desde o texto até o figurino – impecável, diga-se de passagem – tudo isso sendo realçado pelo trabalho do cinematógrafo indicado ao Oscar, John Mathieson. E estes pontos são sustentados pelas atuações certeiras de suas protagonistas. Ronan, cada vez mais madura e mostrando ser uma das melhores atrizes de sua geração, consegue transitar com fluidez entre a imponência dos momentos em que tem que fazer valer seu título diante de homens que se recusam a reconhecer sua autoridade – inclusive seu próprio irmão – e a docilidade pueril e descontraída dos instantes de lazer com suas damas de companhia – cenas que lembram Maria Antonieta, de Sofia Coppola, e não deixam o espectador esquecer o quão jovem a rainha era.

Do outro lado, Robbie – transmutada pela prótese nasal e a máscara branca de talco característica da monarca inglesa – se entrega por completo à personagem obrigada a se tornar uma pessoa dura e fria para sobreviver à masculinidade tóxica que a cerca – ela mesma diz em vários momentos que tem se tornado cada vez mais homem do que mulher e que deseja ser um homem, o que é paradoxal uma vez que são justamente os homens que causam todas as tragédias da história -; porém, a atriz não caiu na armadilha de encarnar a rainha má, demonstrando muita humanidade e emoção apenas com o olhar e nos momentos de solidão. Apesar de, tecnicamente, Elizabeth não ser a protagonista do filme – o título original é “Mary, Queen of Scots” -, sua atuação tem tanto peso que a personagem se faz presente mesmo fora de cena e deixa o espectador ansiando por suas aparições.

Aliás, são justamente as interpretações das duas atrizes que sustentam a trama e amenizam algumas falhas do roteiro e da montagem do filme. Por exemplo, a subutilização do elenco coadjuvante – do qual Guy Pierce faz parte em uma atuação esquecível – e os diversos momentos, cenas prosaicas que pouco acrescentam à história recebem mais atenção do que o necessário, fazendo com que a narrativa principal – principalmente no terceiro ato – fique um tanto quanto apressada e acabem não tendo o impacto tão grande quanto o pretendido – até mesmo as pregações de John Knox parecem um pouco soltas no enredo, evidenciando os problemas na montagem que esticam demais a primeira metade do filme, o que pode desagradar o espectador mais impaciente.

Por outro lado, o roteiro toma algumas decisões eficazes – e até ousadas diante da temática do longa – que só funcionam devido ao fato de haver uma mulher na direção, como o tratamento dado à menstruação de Mary no momento em que suas damas vão limpá-la e a cena em que Lord Darnley (Jack Lowden), o ambicioso, inconsequente e covarde pretendente de Mary, faz sexo oral na rainha. Mas o clímax da trama está nos minutos finais, quando Mary e Elizabeth, finalmente, consegue se encontrar pela primeira vez na vida. É uma cena – lindamente orquestrada e coreografada em uma pequena cabana inglesa repleta de lençóis pendurados, como cortinas – com enorme carga dramática – mais uma vez, elevada pela teatralidade da ambientação – na qual duas mulheres que foram, de certa maneira, forçadas a se tornarem inimigas, mas que, ao mesmo tempo, veem-se como irmãs – em todos os sentidos da palavra -, exibindo uma sororidade culpada, proibida, pesarosa e agridoce.

Assim, embora o longa tenha passado despercebido na temporada de premiações apesar de seu grande valor de produção que consegue se sobrepôr às falhas técnicas, Duas Rainhas é um longa que, definitivamente, vale a pena – mesmo que tivesse potencial para mais -, seja pelo conteúdo histórico, seja pela temática feminista, ou apenas pelas potentes atuações de Saoirse Ronan e Margo Robbie, ou seja, de uma forma geral, este filme pode agradar ao público por vários aspectos – sendo, é claro, o mais importante deles o enriquecimento de um debate tão atual e, simultaneamente, tão antigo envolvendo intolerância religiosa e direitos das mulheres, além de, mais uma vez, expôr – assim como fez a primeira temporada de “Feud” – que, se as pessoas pesquisarem bem, as grandes “rivalidades femininas”, na verdade, sempre foram criadas e incentivadas por homens como uma forma de obter poder.

 

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