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O Silêncio Dos Dragões

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 Oito temporadas, 73 episódios, recorde histórico de vitórias no Emmys (47 premiações). Esses são alguns, não todos porém, dos números alcançados por Game of Thrones no período em que se manteve ativo, de 2011 até 2019, com uma importância que transcende o que se vê em tela e que encontra sua conclusão carregada por um misto de descrença e expectativa nesse domingo (19).

Para começo de conversa, GOT (como é conhecida de maneira abreviada) nasceu da necessidade de se preencher o vazio deixado pela trilogia do Senhor dos Aneis desde 2003 no cenário da cultura pop. Sob a chancela da HBO (canal a cabo responsável pela produção do histórico Sopranos) os produtores David Bennioff e D. B. Weiss conseguiram os direitos de adaptação da saga literária As Crônicas de Gelo e Fogo junto ao autor George R.R Martin que, mesmo a aquela altura possuindo já quatro livros publicados, nunca gozou de um reconhecimento mundial pré seriado.

Da mesma forma como realizado em Senhor dos Anéis, o universo de GOT possui diversas culturas com histórias, costumes e idiomas próprios que, para dar maior veracidade e qualidade à construção daquele mundo, não poderiam ser convertidos simplesmente ao inglês. Dessa necessidade, durante a pré produção, a preocupação de preservar a integridade desses idiomas foi uma das prioridades dos produtores.

Escritores especializados em construção de dialetos ficcionais foram contratados para realizar um trabalho de igual qualidade à língua élfica e do escuro criadas por Tolkien. No intento de fazer jus a riqueza criativa dos livros, os idiomas de países daquele universo (como o Dothraki, valiriano, pentoshi, e das nações a leste) foram transplantados em sua totalidade para os roteiros, atores foram acompanhados por linguistas a dominarem essa comunicação oral para garantirem melhor veracidade a seus papeis.

GOT também revelou alguns dos atores mais rentáveis da atualidade. Nomes como Jason Momoa que após sua participação como Khal Drogo garantiu eventuais papeis como Conan, o Barbaro e Aquaman. Emília Clarke que mesmo durante a produção, interpretou papeis como Sarah Connor (Exterminador do Futuro: Genesis, Como eu era antes de você e em Solo: Uma Aventura Star Wars). Sophie Turner equilibrou o tempo de filmagem com participações em filmes como X-men: Apocalipse e no vindouro X-men: Fênix Negra. Peter Dinklage, o anão Tyrion, esteve em sucessos de público e crítica como Vingadores: Guerra Infinita e Três Anúncios para um Crime.

O sistema de rodízio na direção de cada episódio, algo comum em series de longa duração, também trouxe alguns nomes conhecidos na industria audiovisual e outros que vieram a estourar eventualmente. Jeremy Podeswa ( responsável pelo revelador episódio The Dragon and the Wolf). A veterana de longa da data na televisão, com participações na direção e produção da premiada Breaking Bad, Michelle Maclaren. Matt Shakman precisou de apenas um episodio (The Spoils of War) para não só convencer a audiência de que ele poderia produzir um cenário sujo de guerra e fogo, como também o público leitor de que o aquele momento em que Drogon elimina exércitos Lannister na recém chegada de Daenerys a Westeros era uma das sequencias que mais se aproximavam do estilo de descrição literária de Martin. David Nutter foi o responsável por conduzir a inesquecível sequencia de todo o casamento vermelho, desde a iluminação escura do salão dos Frey até a reviravolta do clima festivo em traição por meio da trilha sonora Rains of Castamere. Atual responsável pela releitura de Hellboy nos cinemas, Neil Marshall conduziu habilmente o desenrolar da batalha de Blackwater no final da segunda temporada, principalmente o espetáculo visual das explosões de fogo vivo nos navios de Stannis, como também o suspense sobre a possível morte de Tyrion. Por fim, há Miguel Sapochnik,o diretor responsável pela condução do que é considerado o ápice da série, The Battle of the Basterds, e por The Long Night. Dois episódios focados em batalhas de larga escala, com identidades visuais próprias (o primeiro marcado pela sujeira de lama do campo de batalha e o segundo pela polêmica escuridão visual).

A serie também é elogiada pela sua estratégia de produção ter sido realmente global e pela dificuldade que isso implicou. Por optar em usar cenários arquitetônico reais, muitos episódios tiveram que ser gravados em simultaneamente em locais afastados. Como por exemplo, em um episódio que aborda Dorne parcialmente, parte das filmagens se locomoveu para a Espanha enquanto outra parte permanecia em países como a Irlanda para realizar gravações em espaço aberto ou estúdio.

Entretanto, conforme a serie foi progredindo, críticas foram surgindo. Algumas focadas em decisões tomadas para certos personagens que não estavam de acordo com o que fora construído até então e outras com relação a adaptação de elementos dos livros. Nesse ponto o autor abandonará a abordagem distante do leitor para uma mais próxima de modo que, para o segundo, a importância do universo literário tanto para a serie quanto para o próprio autor fique bem explicada.

Eu conheci a serie primeiro. Jamais havia ouvido falar dos livros (como boa parte da audiência, creio eu). Após assistir a primeira temporada, marcada principalmente pela morte de Ned Stark, decidi iniciar a jornada pelo universo literário. Meu pensamento inicial durante a leitura do primeiro livro foi o de reconhecer a fidelidade com que a série havia retratado os fatos na primeira temporada, na ordem correta afim de preservar o peso do ocorrido. Porém, notei algo durante a leitura. O universo dos livros era algo extremamente maior do que o visto na televisão ( que para ser justo não possui a mesma liberdade de expansão que o livro), a todo momento eram referenciados momentos da Rebelião de Robert, sobre a personalidade de Rheagar Targaryen, sobre os antepassados da família real, sobre os antepassados dos Starks e por aí vai. Aquele mundo era rico em forma de conteúdo, na presença abundante de acontecimentos aleatórios e que eventualmente não interfeririam em nada no arco principal mas que serviam para criar uma ambientação efetiva. Quase como em jogos de RPG, aonde há centenas de NPCs com histórias e linhas de diálogos próprios.

As crônicas de Gelo e Fogo (propriamente denominadas assim para diferenciar da adaptação televisiva) entregaram alguns dos meus momentos favoritos já lidos em qualquer lugar, como por exemplo o trabalho magistral do autor em converter Jaime Lannister de alguém claramente canalha para o leitor desde o início em um individuo gradualmente decente, isso sem apelar para saltos no tempo, mudança brusca de personalidade de um capítulo para outro ou um simples acontecimento muda-lo 360º. Foi um trabalho paciente, capítulo por capitulo, livro por livro, desconstruindo o personagem por meio de situações, de encontros com novos personagens, de modo que ele pudesse reconhecer em momentos em que alguém lhe imputava perigo que em outros tempos ele fizera o mesmo. A partir do momento em que a metamorfose do personagem está completa eu, e creio que muitos outros, paramos a leitura por um instante e refletimos todo o caminho de Jaime até ali e nos surpreendemos com o trabalho de escrita discreto mas muito eficiente de Martin.

A saga também me deu um dos meus livros de fantasia favoritos de sempre (top 3 fácil) que é o Tormenta das Espadas”. O maior em tamanho mas também o mais denso de todos, impressiona o fato de Martin amarrar tantos acontecimentos chave da guerra dos cinco reis sob a ótica dos líderes de exércitos e dos soldados e mercenários menores. Basicamente, três dos grandes acontecimentos da serie encontrai nesse volume e, se na serie eles foram finais de temporadas marcantes, aqui eles não gozam de tais privilégios ocupando capítulos no meio e parte final do livro. Tormenta é o ápice da guerra e o “fim” da história até então, escrito de tal forma que se assemelha ao trabalho de ficção feito por Bernard Cornwell em “As Crônicas de Artur” e as “As Crônicas Saxônicas”. Por muito tempo, após termina-lo, foi difícil não comparar o caminho que a serie tomava (compactada ao núcleo dos protagonistas) com a riqueza de variedades apresentadas em Tormenta. Talvez mais do que qualquer filme de super herói, GOT deixou claro para o público que adaptar uma obra é por si só uma missão de muita dificuldade.

Gelo e Fogo também se expandem para além da saga principal, apresentando trabalhos que muito se assemelham a spin-offs de televisão. O Mundo de Gelo e Fogo é o atlas daquele universo, apresentando a história de formação do mundo, das nações no continente e dos primeiros reinos e famílias em Westeros, da primeira longa noite, de toda a dinastia Targaryen e muito mais. O Cavaleiro dos Sete Reinos é a coletânea de três histórias que acompanham o cavaleiro andante sor Duncan, o Alto (sem duvidas meu personagem favorito de todas as obras criadas por Martin) e seu escudeiro Egg. O recente Fogo e Sangue que narra mais detalhadamente parte da dinastia Targaryen com uma ótica mais narrativa e menos documental do que em Mundo de Gelo e Fogo.

Dito tudo isso, para que o leitor compreenda a natureza de muitas das criticas atuais de parte publico com o caminho que a serie vem tomando desde a muito tempo. Por vezes pode ser complicado ter que ignorar a riqueza contida nas paginas para focar no arco narrativo do elenco principal (que muitas vezes dão em situação não condizentes com o personagem ou concluídas de maneira que claramente prioriza o visual em detrimento do conteúdo) . Porém a diferença desses dos meios de comunicação exige que o publico moderno exercite a capacidade de separar as versões e avaliar ambas pelo mérito e possibilidades que o meio natural delas permitem. Ainda mais em uma época em que os grandes estúdios optam cada vez mais por adaptar livros que são sucessos de venda em detrimento de trabalhos autorais de roteiristas.

GOT atravessou um longo caminho, quase tão grande quanto aquele feito por Daenerys em direção a Westeros, e nunca foi livre de críticas (como qualquer produto do homem). Porém a revolução ocorreu, uma mudança quase cataclísmica no modo de se produzir uma serie que, de agora em diante, criará um público muito mais criterioso quanto ao apuro técnico. Nunca antes um nível tão alto de cenários, figurinos, trilha sonora, computação gráfica combinou harmoniosamente para a criação de um produto com muito mais cara de cinema do que televisão.

A serie também se vai deixando vago um trono de ferro de audiência que certamente será disputado por grandes produções que virão. O mercado audiovisual já percebeu essa demanda e, se no passado series similares jamais conseguiriam bater GOT de frente, preparam até o fim do ano uma enxurrada de produções do gênero fantasia que visam ocupar esse trono.

É literalmente o fim de uma era na televisão e a criação de um novo modus operandi. A partir de agora não há mais espaço para produções enxutas e a palavra de ordem será exuberância, riqueza visual. Se elas irão vir amparadas por bons roteiros e elencos, já é um outro papo (pois até GOT tinha muitas peças fracas em seu elenco principal) mas é certo que o mercado televisivo mudou e, assim como o cinema blockbuster viu com o sucesso da Marvel o lucrativo gênero de super-heróis, empresas como a Netflix e a Amazon apostarão tudo o que tem nesse novo campo da guerra pela audiência (ou assinaturas se o futuro for definido como o monopólio dos serviços de streaming).

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