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Divino Amor: Uma parábola político-religiosa que põe um espelho em frente ao Brasil contemporâneo

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“Um conto religioso pouco ortodoxo de Gabriel Mascaro”, esta é a frase que define o longa Divino Amor no poster oficial do filme, e, de fato, não poderia haver definição melhor. A produção – escrita pelo próprio diretor em parceria com Rachel Ellis, Esdras Bezerra e Lucas Paraízo – realmente possui as estruturas de um conto – na verdade, é quase uma parábola político-religiosa que põe um espelho em frente ao Brasil contemporâneo, um país conflituoso que não consegue desvincular religião e política. E, após uma bem-sucedida estreia no Festival de Sundance – onde foi apontado como uma possível primeira reação cinematográfica à ascensão da extrema-direita representada pelo atual presidente brasileiro -, o filme chega aos cinemas, tendo bastante atenção do público por ser uma distopia brasileira sobre uma espécie gentil de tirania.

A trama se passa em 2027 e acompanha Joana (Dira Paes), uma funcionária de cartório responsável por processar pedidos de divórcio. No entanto, como uma boa cristã, ela vê em seu adorado trabalho uma oportunidade de fazer o bem, segundo suas crenças. Assim, a mulher sempre tenta promover uma espécie de conciliação para evitar o fim da aliança sagrada que é o matrimônio e o meio que ela encontra para isso é levar estes casais em crise para a Divino Amor, uma espécie de culto de auto-ajuda fundamentalmente religiosa apenas para casais. Contudo, apesar de toda a fé e devoção, Joana não consegue entender por que Deus ainda não atendeu suas preces por uma gravidez, tão desejada por ela e seu marido, o florista Danilo (Júlio Machado). O casal tenta ded tudo para ter um filho, desde rituais religiosos até um tratamento com vitaminas e infravermelho para estimular a fertilidade, mas nada dá certo. E é neste ponto que o principal conflito da protagonista se estabelece: sua inegável fé no divino começa a ser abalada.

Bem, o primeiro ponto que merece destaque é que, em seu terceiro longa – após Ventos de Agosto, de 2014, e do premiado Boi Neon, de 2015 -, Gabriel Mascaro se estabelece como um dos melhores e mais ousados cineastas de sua geração, basta ver a quantidade de temáticas abordadas em seu novo filme. Aqui, ele trata da hétero-normatização da sociedade – aspecto presente em vários setores da produção, como o design de produção primoroso de Thales Junqueira e a cinematografia impecável de Diego Garcia, ambos trabalhando, majoritariamente, com um tom quente de rosa e um azul elétrico, o que une a inocência das cores, em geral, associadas a crianças a um brilho sensual.

Há, ainda, uma crítica à hipocrisia das alas do governo que insiste em unir preceitos religiosos ao trabalho político – no longa, o Brasil se tornou um país política e socialmente evangélico, o que traz ótimas ideias que enriquecem a produção, como os detectores instalados em todos os lugares de grande circulação de pessoas e informam publicamente o nome da pessoa, profissão, seu status de relacionamento, se a mulher está grávida e se o feto já teve o DNA registrado na base de dados do governo (talvez, como uma forma de impedir abortos); e, como é informado logo no começo do filme, o Carnaval já não é mais a maior festa do país – ele foi substituído pela Festa do Amor Supremo, que dita a regra para todas as outras festas e baladas, as quais se tornaram uma espécie de rave evangélica onde se lê a frase “Deus me basta” em todos os telões.

O roteiro também faz um interessante contraponto entre o puritanismo pregado socialmente e o “hedonismo justificado”, presente no culto frequentado por Joana e Danilo, cujo lema declara que “quem ama, não trai – quem ama, divide” e uma das técnicas de reconexão entre os membros é a troca de casais – desde que o orgasmo aconteça com o cônjuge, uma vez que “a semente da vida só pode ser depositada na Mãe Terra (o que também significa que a homossexualidade está fora de questão também). E, assim, surge um dos principais méritos dos longa. Quem já assistiu a “Boi Neon” sabe que Mascaro não tem pudor em mostrar cenas de sexo explícito e nudez frontal – a diferença é que, aqui, elas não são gratuitas e têm um papel fundamental, uma vez que causam mais estranhamento do que excitação, mesmo com a aura sensual que cerca toda a primeira metade do filme.

E, obviamente, tratando-se de uma história sobre o Brasil, o diretor não deixa de fora um dos aspectos mais marcantes do país: a burocracia kafkiana, a qual tem um peso relevante para o desenvolvimento da protagonista – até, como notou a IndieWire, lembra um pouco a clássica comédia Brazil, dirigida por Terry Gilliam em 1985, porém com menos ironia e mais romantismo-sensual. Como não há a figura de um vilão tradicional ou um obstáculo/agente externo, a personagem acaba por ter muitas camadas. Trata-se de uma pessoa boa, sem dúvidas; a questão é que ela exerce sua bondade de acordo com suas crenças religiosas, assim, a própria Joana admite se aproveitar da maçante burocracia exigida pelo governo para dissuadir os casais que buscam o divórcio, no entanto, ela realmente acredita que está fazendo algo bom para aquelas pessoas – o que fica claro quando ela é confrontada acerca disso.

Aliás, a atuação de Dira Paes é um dos grandes destaques da produção. A atriz, que tem uma longa e louvável carreira no cinema – principalmente em papeis dramáticos -, ficou conhecida do grande público por meio da comédia como uma personagens coadjuvante no seriado “A Diarista” e, nas novelas atuais, é o primeiro nome que vem à mente quando se pensa na “mãe batalhadora”. Aqui, ela desenvolve um de seus trabalhos mais complexos dos últimos anos: uma mulher que acredita tão intensamente em Deus, nos ideais conservadores da sociedade e que somente sendo uma pessoa boa ela receberá a graça divina que, em meio ao seu desespero para ter suas preces atendidas e engravidar, ela acaba errando mesmo que tente acertar. E este conflito interior é externado em suas conversas com um pastor evangélico patriarcal (Emílio de Melo) em uma espécie de posto de aconselhamento drive-thru – outra ótima ideia do roteiro.

Mas, o ponto alto do trabalho da atriz se dá quando o mundo de Joana começa a, de fato, desmoronar no terceiro ato com uma virada no roteiro que já era parcialmente previsível devido à narração que permeia o longa – uma voz infantil, que, apesar de não ter muitas variações emocionais, expressa ideias muito adultas, o que é uma compensação -, mas não deixa de ser impactante, em especial, por cusa da forma como ela acontece – especificamente, a cena em que Joana entende o que está acontecendo é digna de aplausos para Dira Paes, que está em foco durante todo o segmento – e, diga-se de passagem, vem recebendo muitos elogios da crítica internacional, que a conhecia, basicamente, pelo filme “A Floresta de Esmeraldas”, dirigido por John Boorman e lançado em 1985.

Assim, Divino Amor é, sem dúvidas, um dos melhores expoentes do cinema nacional contemporâneo, que mistura sci-fi, drama e erotismo de forma elegante em uma excelente e crível construção de mundo – uma das especialidades de Gabriel Mascaro – super estilizada com uma pegada de futurismo retrô e uma trilha sonora eletro-oitentista carregada de sintetizadores que eleva ainda mais a sensação de estranhamento e artificialidade presente debaixo de toda aquela naturalização social, o que agrega mais valor às críticas feitas até a última cena – esta, um pouco menos sutil do que as presentes no resto do filme. Tudo isso de maneira fluida e sem ser panfletário. E, lançado em um tempo em que a extrema direita assume o poder impregnada de preceitos religiosos frágeis, “Divino Amor” apresenta, como apontou a Variety, “uma nova era do cinema de protesto brasileiro”.

 

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