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Moyseis Marques lança CD e DVD “Passatempo”

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Certa vez, alguém não pegando bem a coisa disse que João Gilberto seria desafinado. E Newton Mendonça e Tom Jobim deram a João um samba para, digamos, explicar: “Eu mesmo mentindo devo argumentar:/Que isso é bossa nova, isso é muito natural”. E quando ainda dizem por aí que compositores como Edu Lobo e Chico Buarque não seriam bons cantores? “Mesmo que os cantores sejam falsos como eu serão bonitas/Não importa são bonitas as canções”, responde a dupla em seu “Choro bandido”, feito aliás em homenagem a outro afinadíssimo “não cantor”, o mesmo Jobim do “Desafinado”.

Não por acaso, no finalzinho de “Poeta é outro lance” a flauta de Dudu Oliveira cita a melodia do “Choro bandido” como uma graça, um pequeno chiste musical para coroar o samba sincopado e malandríssimo que Moyseis Marques escreveu no mesmo espírito do “Desafinado” e do choro de Edu e Chico, não propriamente para rebater uma crítica mas para se divertir, fazer música bonita com ela. E ainda “explicar” de forma criativa e subliminar um troço importante: além da privilegiada e celebrada voz de cantor homem, craque nas síncopes do samba e do forró e doce nas canções românticas, Moyseis Marques é, e sempre foi, também um compositor de verdade – não por acaso levam a sua assinatura, entre inéditas e regravações, 17 das 23 faixas deste CD e DVD ao vivo “Passatempo”, gravado no Imperator, em pleno subúrbio carioca da sua origem, comemorativo de seus 20 anos de carreira.

“Poeta é outro lance” é, como aquele filme da madrugada na TV, baseado em fatos reais. Um colega, desses “sem nenhum romance”, chegou mesmo e introduziu aquele “meu compadre” perigoso de fim de noite: “Pra cantar tu leva jeito, mas poeta é outro lance”, disse mais ou menos assim. E, compositor de verdade que de fato é, Moyseis não acusou o golpe, pegou o mote e criou um sambaço, soberbo e humilde como todo bom samba: “Eu não sou Chico Buarque, nem Paulo Pinheiro, nem Nei, nem Aldir/Mas tenho a minha arte e uma pequena parte pra contribuir”. Humildemente, Moyseis Marques se submete como aprendiz desse quarteto superior das letras e da música carioca – às quais natural e evidentemente se filia – mas espertamente no CD/DVD mostra como é na verdade um seu seguidor.

De Chico Buarque, Moyseis conta com a sincera admiração desde pelo menos quando interpretou no teatro o protagonista da “Ópera do malandro”, Max Overseas, ou quando dividiu com ele (e a pedido do próprio) o palco do Semente, o já histórico bar da Lapa. Tanto que, além de cantar “Mambembe” durante o show, ele tem a honra de receber Chico para a única faixa gravada em estúdio deste trabalho: um emocionante dueto com o autor de “Subúrbio”, obra-prima de Chico Buarque gravada por Moyseis em seu segundo CD, “Fases do coração”, de 2009, aqui recriada no estúdio da gravadora Biscoito Fino de forma simples, sincera, como uma conversa musical em varanda suburbana (e com o jeito naturalmente suburbano que a intepretação de Moyseis deu a ela).

De Paulo (“Cesar”) Pinheiro, Moyseis refaz ao vivo um de seus maiores sucessos como cantor, a também carioquíssima “Nomes de favela”, melodia e letra atualíssima do poeta, que abria seu primeiro disco, de 2007. De Nei (Lopes), Moyseis tornou-se parceiro constante. E apresenta aqui um samba amaxixado espetacular, “Profissional”, bem no espírito de autoafirmação de “Poeta é outro lance”: “Nunca fui amador e em matéria de amor/Sou um bom profissional/E quero ser tratado como tal”, canta como se falasse de música, também uma forma de amor.

De Aldir (Blanc), Moyseis também tornou-se parceiro – “Pretinho básico”, dos dois, já foi gravado pela cantora Dorina – mas aqui em “Passatempo” Aldir talvez esteja no espírito de várias composições, mais evidentemente em “Meu canto é pra valer”, um lindo samba de carnaval de Moyseis com Moacyr Luz, um dos parceiros históricos de Aldir. Como em tantas composições de Moacyr e Aldir, “Meu canto é pra valer” é uma celebração do samba não só como música, mas como um modo de vida tão específico do Rio de Janeiro – “De dentro da luz desses olhos/E tantos cabelos grisalhos/Canta uma agremiação/Escola bordada de zelos/De cores, amores e apelos/Que o surdo de marcação viu bem”. A homenagem e a filiação de Moyseis a Aldir é tão explícita que, do meio de sua originalíssima composição com Moacyr brota a citação do clássico “Saudades da Guanabara”, hino composto por Moacyr, Aldir e Paulo César Pinheiro.

Mas mais do que reverenciar seus mestres, alguns agora parceiros, o que mais Moyseis Marques faz neste trabalho de 20 anos de carreira é filiar-se à sua própria geração de cantores e compositores brasileiros contemporâneos. Em “Passatempo” há um desfile deles, dentre cantores e músicos que participam do show aos parceiros que assinam as composições com Moyseis. Na própria “Poeta é outro lance”, Moyseis convidou o músico e compositor João Martins – grande representante da novíssima geração de compositores de samba – para dividir não só a faixa com ele, mas o grito de que os novos precisam ser ouvidos, sempre.

Com Edu Krieger, Moyseis revive duas parcerias clássicas dos tempos do dia-a-dia na noite da Lapa. A confessional “Entre os girassóis” é aquele samba clássico que abria o disco de 2009, revisto hoje já demonstrava a maturidade de Moyseis como compositor – e não apenas uma voz bonita. Coisa que outra composição sua com Edu Krieger do disco seguinte, o samba exaltação contemporâneo “Bicho do mato” só vem a comprovar, com seu refrão matador, tão clássico e tão atual: “Pinho de jacarandá pra tocar/Coco pra fazer cuscuz/Um robalo e dois pitus/Óleo de jaborandi no shampoo/Água da Foz do Iguaçu/Praia em Itaipuaçu”.

Também do tempo heroico da Lapa é a parceria com o seu contemporâneo Fernando Temporão, o samba metalinguístico “Deixa estar”, originalmente gravado no CD “Pra engomar”, de 2012.

Apesar de carioca da Vila da Penha – de onde pinçou o samba “Oitava cor”, de seu vizinho e grande influência Luiz Carlos da Vila, aqui apresentado de forma grandiosa – Moyseis Marques é tão nativo do forró como do samba. “Sambaião”, parceria inédita com o também carioca João Callado, tematiza essa irmandade tão rica para a música brasileira pois abarca suas duas principais linhagens, o baião rural e nordestino e o samba, urbano e carioca.

A inédita “Madeixa” é típica representante do forró carioca contemporâneo, com sua melodia lírica e sua letra com metáforas a partir do corpo da mulher amada: é um xote em parceria com o também carioca Vidal Assis e tem a participação do acordeonista Kiko Horta, criador do bloco Cordão do Boitatá e forrozeiro de primeira. Também em parceria com Vidal é o baião “Amor de sabiá”, com suas metáforas também de natureza, seu arranjo grandioso e a participação vocal de Marcelo Mimoso, principal voz jovem do forró carioca, estrela do musical “Gonzagão, a lenda”.

Íntimo do teatro musical que se faz hoje no Rio, dos mesmos produtores de “Gonzagão” e a “A ópera do malandro”, Moyseis fez com Bena Lobo a canção que daria nome ao grupo, “A barca dos corações partidos”, e a um de seus principais espetáculos, “Auê”. Trata-se de um ijexá em homenagem à toda música nordestina (“São Luiz Gonzaga nos chamou”) e que não por acaso evolui para um baião diferentão, em 6/8, épico e lírico ao mesmo tempo. “Juntando cacos”, samba de forte influência emebística, buarquana – não fosse composto por Moyseis durante a temporada de “A ópera do malandro” – reforça seu aspecto teatral na participação vocal de Laila Garin, cantora especializada em musicais de teatro.

O peso, ou seria melhor dizer a leveza, da música nordestina impregnou tanto a música de Moyseis que ele enche de nordestinidade o clássico de Bob Marley “Is this love?”, indiferenciando o reggae jamaicano do xote maranhense (da terra do reaggae brasileiro que Moyseis frequenta há tempos), promovendo mais uma ponte cultural tão própria de seu trabalho. É o lado cantor que continua a aflorar no trabalho de Moyseis, também presente na recriação que faz do clássico “Disritmia”, que já havia gravado no Sambabook de Martinho da Vila.

Dentre tantos parceiros seus contemporâneos, Moyseis também apresenta parceiros um pouco mais velhos, demonstrando a extensão que seu trabalho atingiu nestes 20 anos. “Panos e planos”, com Luiz Carlos Máximo que vem do universo das escolas, de um samba maduro e popular, nasceu um dos principais sucessos de Moyseis, do disco de 2009 e que fez parte até de trilha de novela “Insensato Coração”.

A melodia delicada de Zé Renato gerou o samba reflexivo “O lado bom da incerteza”, com letra madura de Moyseis, na forma e no conteúdo: “Enxuga o suor, sabendo o que é melhor a fazer/Segue o teu destino inocente/Simplesmente faz o que te deixa feliz/Quando o amor se faz descontente/Deixa uma semente e corta o mal na raiz”. Enquanto com o mestre do violão e grande compositor Claudio Jorge vem a canção que dá título ao trabalho. Parceria à moda antiga – a primeira parte, letra e música, é de Claudio Jorge, a segunda de Moyseis – “Passatempo” talvez seja a canção mais elaborada do disco daí uma boa senha para os próximos 20 anos.

Responsável pelo violão de base – e por essa arte tão brasileira de tocar violão em alto nível e cantar – e pela maior parte dos arranjos, Moyseis lidera uma banda com alguns dos melhores músicos da noite carioca, sua escola. Que lhe deu experiência, tornou-o um cantor e violonista seguro, um arranjador inspirado e burilado na faculdade de música da UNI-Rio, mas principalmente um compositor que, aos 20 anos de profissão, acabou por dominar este trabalho retrospectivo. Ou, como diz em “Poeta é outro lance”, neste processo criativo que tem “50 de estudo e 50 de loucura”, “Com o tempo a tinta pega, sendo assim eu não me rendo/Argumento com o colega, insistindo um dia aprendo”. E Moyseis aprendeu. Ou, como se dizia na Lapa, “esse sabe tudo”.

Por Hugo Sukman, julho 2019

 

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Redação do site E-mail: contato@rotacult.com.br

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