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A Vida Invisível é, de fato, um melodrama tropical

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Apesar do momento difícil pelo qual o país está passando, com a cultura sob ataque do próprio governo, o cinema nacional parece passar pelo seu melhor momento – artística e narrativamente – desde a virada do século, com títulos que conseguem aclamação internacional e sucesso nas bilheterias brasileiras. E A Vida Invisível, novo longa de Karim Aïnouz é um exemplo disso.

Após conseguir atrair os olhares do mundo ao ser premiado na mostra paralela Un Certain Regard, no Festival de Cannes deste ano, o filme – adaptado do romance “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”, de Marta Batalha – foi escolhido como representante brasileiro para tentar um vaga na categoria de Melhor Filme Internacional do Oscar, desbancando o hit do ano, Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, laureado na competição principal do festival francês.

De fato, a escolha da comissão brasileira pelo filme de Aïnouz parece ser mais acertada, uma vez que o grupo que escolhe os selecionados para a disputada categoria é o mais conservador da Academia e tende a gostar da estrutura dramática clássica com forte valor nacional/regional de cada país candidato. E estas características estão presentes em A Vida Invisível, que vem sendo definido pelo diretor como “um melodrama tropical”.

Esta definição – que vem sendo propagada aos quatro cantos – já é uma forma de destacar os aspectos que a Academia gosta para que o Brasil possa, após 21 anos, concorrer à estatueta de Melhor Filme Internacional novamente – assim como a alteração do título, que, originalmente, era homônimo ao livro. No entanto, a classificação não poderia ser mais adequada: A Vida Invisível é, de fato, um melodrama tropical.

A trama se passa no Rio de Janeiro, no fim da primeira metade do século XX, e acompanha a vida de duas irmãs. Eurídice (Carol Duarte), a mais introspectiva, sonha em se tornar uma pianista de sucesso – algo impensável para uma mulher à época. Já Guida (Julia Stockler), que é o oposto da irmã e não se conforma com as pressões impostas sobre as mulheres , o que resulta em sua fuga da casa da família. Assim, o longa mostra essas duas mulheres-irmãs que tomaram caminhos diferentes tentando se reencontrar.

 Desta forma, o maior desafio dos roteiristas Murilo Hauser e Inés Bortagaray – que colaboraram com o diretor – era captar a essência tão intimista e humana do livro de Batalha e adaptá-la para a linguagem cinematográfica, mas a união com a direção precisa de Aïnouz consegue traduzir tudo isso de maneira visceral por meio do arrebatamento visual, seja pela fotografia quente e super saturada de Hélène Louvart, seja pela direção de arte orgânica ou pelo trabalho de som – tudo aqui é hipnótico.

 Além disso, a direção é um dos pontos altos da produção. Aïnouz não é nenhum novato e possui clássicos do cinema brasileiro em seu currículo, seu novo trabalho deve se destacar em sua filmografia justamente por quebrar algumas características do trabalho do cineasta, como o naturalismo sempre presente em suas obras.

Aqui, Aïnouz busca levar à tela a representação feminina em um contexto de opressão, não apenas social, mas sobre seus corpos também – até mesmo as cenas de sexo do filme são incômodas, pois mostram uma forma de dominação, afinal, na época, o corpo feminino era uma propriedade do marido e tinha como único objetivo a procriação. E este é apenas um exemplo da crueza com que o tema é retratado, sem maniqueísmo, idealização ou fetichização de qualquer aspecto.

 O longa também acerta na representação dos homens. Seja o pai ignorante (António Fonseca) ou o marido banana (Gregório Duvivier, muito bem na personagem), nenhum deles é retratado como vilão folhetinesco, mas como produto de um tempo que oprimia e desperdiçava a vida e o potencial das mulheres – aqui, representadas por Eurídice e Guida – em nome de papéis sociais limitadores de uma sociedade patriarcal.

Outros destaques entre os coadjuvantes são Bárbara Santos, que interpreta Filomena, amiga de Guida, e Maria Manoella, que dá vida à Zélia, confidente de Eurídice. Mas os pontos altos do filme são, definitivamente, Carol Duarte e Julia Stockler – principalmente a segunda, que deixa a audiência boquiaberta com sua interpretação de Guida. E, como a cereja do bola, há Fernanda Montenegro, interpretando Eurídice idosa; é uma participação breve, mas a atriz entrega um trabalho tão delicado e preciso, que, fosse este um filme hollywoodiano, o Oscar de Atriz Coadjuvante já seria dela.

Assim, A Vida Invisível é uma produção que acumula muitos acertos, desde o roteiro, passando por todos os aspectos técnicos, até o desempenho impecável do elenco, tudo isso convergindo para contar as história destas duas mulheres – a mudança no título também se deve ao peso igualitário que elas têm na trama – vivendo em uma sociedade opressora – que tenta esticar seus tentáculos até os dias de hoje – que impõe a ausência de uma à outra; é, sim, um filme sobre ausência, mas é também um filme sobre amor, o amor entre duas irmãs, duas mulheres-irmãs.

 

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