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“Ielda – Comédia Trágica” retrata aquilo que de mais grotesco há no brasileiro

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É bastante difícil começar a descrever algo do qual não se gosta. É o caso da peça “Ielda – Comédia Trágica”, de Renato Carreira, em cartaz no teatro Petra Gold. Não há harmonia cênica, visagismo, ou preocupação com o agradar dos olhos do público. Trata-se de anti-estética pura. A opção tanto do autor, quanto da direção quanto da execução por parte dos atores é a de retratar aquilo que de mais grotesco há no brasileiro. Uma doméstica que é uma assassina traz uma verdadeira imersão na não-religião e na não-civilização se desvelam em cena.

Para comentar, denunciar e questionar os atuais retrocessos do governo, tanto na área da cultura, quanto em áreas sociais, a dramaturgia nos leva de volta às eleições que levaram o presidente Fernando Collor de Mello ao poder e demonstraram como o desinteresse popular pela política e pela defesa de seus direitos pode nos levar ao caos e à carnificina. Em determinado momento pergunta-se “O que é que está faltando para se começar um guerra?” – muitos diriam tratar-se de apologia à violência. Em outro momento, a personagem munida de um revólver, decreta extintos os cultos que alienem e encham de ódio a população – muitos diriam se tratar de anarquia ou revolução.

A questão que se instaura é: há uma demanda por atenção e por afeto por parte de uma população que está se matando aos poucos, cotidianamente, e vivendo a feiura do desamor. A peça se lança no universo da periferia sentimental do mundo, no entre lugar que leva humanos a deixarem sua condição deítica para mergulharem na lama do animalesco. Há que se ter estômago.

Há música, mas trata-se de proto-música. Há composição de personagens, mas as identidades ali criadas e demonstradas respondem à ordem do profano, da demoninação e do descalabro. Há mensagem, ou, moral positiva, mas está praticamente ocultada pelo anti-espetáculo que é proposto.

Se pudesse, aconselharia a direção a apostar na maior conformidade com os códigos e padrões mais comumente dispostos nas artes dramáticas, tais como o da beleza, simetria e encantamento. Trazer para o tablado a proscrição pode ser um tiro no pé. Contudo, parece não ser possível compatibilizar o escárnio e a paródia que se oferece ao público com algo aprazível, parece que a opção é realmente a de afetar o mundo por meio do terrível, da catástrofe, da eca tombe dos sentidos e das sensações.

Aplaudir, todos nós aplaudimos ao final, pois trata-se sem dúvida de um esforço artístico  dos atores que têm experiência e seriedade, alguns já renomados dentro do teatro do Sudeste. Especialmente, tendo em vista que a montagem foi levada adiante sem verba alguma, sem apoio algum, vencendo os entraves e os embargos que o atual governo – desgoverno – impõe a segmentos inteiros, como os da educação, da saúde, da cultura, mostrando seletividade e perfil censurador em suas contemplações de patrocínio e suporte. Contudo, não é uma peça para se rir, para se emocionar, para se gostar, é um peça para assustar. É o susto que suspende o soluço da ignorância e da indiferença das nossas instituições com parcelas inteiras do povo, com grupos, setores, categorias profissionais.

A tragédia cômica, ou a comédia trágica, não é o que gostaríamos de estar encenando, mas é possível que seja o que precisemos ver. Para impactar? Para chocar? Para forçar a reflexão? Para forçar o expurgo. Não há que se falar em catarse, não há que se falar em sensibilização. A pós-dramaticidade ali desenhada, às referências constantes ao mundo da criminalidade, do desamparo, da prisão dos sentimentos negativos não é o que o público merece, mas é o que ele está produzindo, inconscientemente, por meio do seu descaso político-democrático, por meio do seu abraço aos meios coercitivos em vez do diálogo, por meio da indiferença demonstrada ao cuidar de suas instituições e de seus patrimônios. Não há o que se fazer nesse sentido, a arte continua sendo um reflexo – às vezes mais ou menos exagerado – da forma como as coisas, a vida se apresenta.

“A vida deve ser vivida como ela é” grita uma personagem, de fato, apesar de não obter minha reverência em termos de técnica e potência artística empregados, é uma afirmação com a qual não se pode discordar.

Felipe Mury
Felipe Mury
Felipe Mury é ator formado pela Casa de Artes de Laranjeiras e bacharel em Direito pela UFRJ. Amante das Artes Cênicas, especializou seu olhar em relação ao Teatro, sendo uma ficcionado por Shakespeare e Brecht.

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