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Sem Deixar Rastros traz demonstração do poder destrutivo da manipulação

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Algumas histórias nos dão a clara convicção de que não precisamos do conceito cristão de Céu e Inferno para entender quando estaremos em um ou outro, na própria existência. Ou quando materializações de criaturas demoníacas demonstrarão seu poder, tramando por trás do nosso conhecimento artifícios para que caiamos em desgraça, se possível levando alguns junto conosco. Sem Deixar Rastros é um impressionante retrato sobre um período de injustiça na história da Polônia, que vinha de anos de repressão forte do Estado, onde os eventos trágicos só não se sucedem com mais força do que o poder desse manancial de tragédias conseguir tragar cada vez mais indivíduos para dentro de seu turbilhão.

  1. Dirigido por Jan P. Matuszynski, que nasceu um ano depois dos eventos mostrados em seu filme, o longa consegue ferver um debate sobre corrupção de valores, desamparo da população diante da máquina estatal, a maneira meticulosa como a deturpação e a chantagem atingem pessoas de bem, e destroem seus mecanismos. Com uma fotografia lavada que monta uma cadência documental em sua textura, o jovem diretor transforma Sem Deixar Rastros em uma gradativa demonstração do poder destrutivo da manipulação de fatos, de pessoas e de sentimentos. Para isso, o filme nos joga nessa jornada de contínua perda de direitos, nos quais as defesas dos personagens caem por terra a cada nova camada narrativa.

Entendam por camada narrativa como as muitas associações de horror entre algum tipo ligado ao poder, e alguém que não tem nenhum, e será ameaçado pelo anterior. Essa é a dinâmica não apenas de Sem Deixar Rastros, como também dos rumos que vemos as coisas tomarem em qualquer outro país sob regime totalitário ou quase isso, ainda que 40 anos depois do acontecido, nesse caso. Certamente, não é uma ideia que seja exatamente original, mas que continua a gerar profundo asco no espectador, mesmo os mais endurecidos.

O diretor Matuszynski move as peças de seu xadrez na direção de que não sobre qualquer ser incólume ao que houve, seja como vítima ou como algoz (ou um pouco de cada), cada personagem visto em cena terá uma importância preponderante a partir de determinado momento.

Sem Deixar RastrosMesmo com uma duração avantajada, que parece querer torturar também quem assiste aos horrores pelo qual passam os sobreviventes ao assassinato de um jovem de 18 anos pelas forças policiais, Sem Deixar Rastros não deixa de ser um exercício de imersão na dor psicológica dos envolvidos. O roteiro detalha curvas de construção dos arranjos pelos órgãos governamentais, com as quais minam o afeto que um grupo de pessoas deveria ter umas com as outras, substituindo em cada um deles um misto de indignação, desconfiança e a produção de constantes traições. É como se o veneno que corrói as internas corporações acabasse vazando para as relações interpessoais, e dessas relações sobrassem apenas o que foi derramado sobre elas: O fel.

Esse ritmo particular que o filme compreende sobre o tempo que se passa em tela, e que é dilatado pela melancolia e pelo desespero sobre o qual todos ali estão sendo testados, é uma forma de alavancar no espectador um estado de coisas que o exaure.

  Sem Deixar Rastros deixa uma micro sensação do que foram aqueles dias entre 1983 e 1984, onde a Polônia tinha acabado de sair de uma lei marcial que cerceou os cidadão e “desapareceu” com outros tantos. O clima, no ano seguinte, ainda não tinha arrefecido, e muitos policiais ainda faziam o que queriam, enquanto estudantes ainda estavam imbuídos de sentimentos revolucionários. Quando Grzegorz Przemyk é espancado até a morte por não ter documentos à mão, o sinal de que as coisas ainda não tinham mudado por completo vêm à tona.

São jogos de poder claramente instituídos, onde a fala mais cruel é pronunciada por um dos poderosos, quando declara “você já destruiu aquela família”, da maneira mais inerte possível. E esse horror é verdade, porque a partir do momento que os fatos entram no efeito dominó, não existirá mais nada a sobrar de pé no fim. A essa fala podemos costurar uma das imagens finais, quando Jurek e seu pai se transformaram em estranhos nos bastidores do julgamento.

Além disso, Sem Deixar Rastros é também um estudo de roteiro quanto a esses estratagemas criados dramaticamente para detonar o acontecimento de outras origens, e os eventos reais que inspiraram o filme, paralelo ao tanto de sofrimento que gerou, também encadeiam o ‘modus operandi’ do Cinema, ao acender um rastilho de pólvora que só irá cessar quando não mais restar nada intacto.

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