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Foucault em gotas de suor – e grande atuação em “Tráfico”

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A partir do entendimento de coexistência entre as pulsões de vida e de morte, gerados pelo abandono da segurança pública.

Ao presentear a Sociologia com um aforisma de timbre psicanalítico, ao julgar a vida carcerária – no caso, a frase “a alma, efeito e instrumento de uma anatomia política; a alma, prisão do corpo” -, Michel Foucault (1926-1984) avança da História para o Teatro como um espectador ausente ideal para a peça “Tráfico”. Lotando sessões, depois de um trajeto de fôlego em 2022, o espetacular rasga-coração de Robson Torinni retoma ideias sobre “vigilância” e “punição” do filósofo que radicalizou o Collège de France.

Trafico
Foto: Gabriel Nogueira

Segundo Foucault, a sociedade faz uso abusivo do poder através das instituições, escolas e prisões, por exemplo. “A norma, está inscrita entre as “artes de julgar”, ela é um princípio de comparação. Sabemos que tem relação com o poder, mas sua relação não se dá pelo uso da força, e sim por meio de uma espécie de lógica que se poderia quase dizer que é invisível, insidiosa”, dizia o pensador francês. Em suas reflexões a contemporaneidade seria definida sob o vetor da disciplina, que nada mais é do que um meio de dominação que tem como objetivo domesticar o comportamento humano. Assim aparece o personagem de Torinni em cena, Alex, um tipo que ama, muito, em demasia e desmazelo.

Apesar do que seu título possa sugerir, “Tráfico” é esculpida como se fosse uma história de amor. Fala de um amor dilacerante, daqueles que contaminam, como um LP do Julio Iglesias ou um filme antigo de David Lean (“Desencanto”, sobretudo). Trata-se de uma peça sobre um homem, escrita por homem (Sergio Blanco), dirigida (de modo claustrofóbico) por homem (Victor Garcia Peralta), e encenada num monólogo de um ator que se doa até a plenitude de sua alma no palco. Mas esse seu masculino dominante não é dominador e vai sendo pouco a pouco alquebrado. Assim as ordens foucaultianas do discurso o quebram.

Foucault escreve: “A culpa não começava uma vez reunida todas as provas: peça por peça, ela era constituída por cada um dos elementos que permitiam reconhecer um culpado. Assim, uma meia-prova não deixava inocente o suspeito enquanto não fosse completada: fazia dele um meio-culpado; o indício, apenas leve, de um crime grave, marcava alguém como ‘um pouco’ criminoso”. Esse é o estado de Alex (Torinni). Sua narrativa é eivada pela culpa.

Lean (1908-1991) diz em “Brief Encounter” (Grande Prêmio do Júri de Cannes, em 1946), o tal de “Desencanto”, que “toda história de amor é uma história de talvez”. Não por acaso sempre um “Talvez eu tenha me doado demais”. Ou um “Talvez eu tenha errado” no jogo de amar. A gente vê isso em cena. Na periferia de uma cidade latino-americana não delimitada por parâmetros geográficos, as desigualdades afogam Alex e empurram sua vontade de potência para o crime. Ele tem consciência de seus erros, de suas escolhas cretinas. Porém, tem consciência do veneno sociológico que galvaniza suas decisões. O texto de Blanco sabe ser cristalino nisso.

Toda a narrativa de Blanco que Alex compartilha com a plateia, num vomitório adocicado, é assombrada, certamente, por uma reflexão condicional. Cada afirmação de sua vivência é acompanhada de algo que poderia ter sido. Seja esse “poderia” algo sereno ou algo aconchegante. A “farinha” que ele cheirou na falta de cocaína da boa engrossa o caldo desse condicional até o ponto da entorna. Alex passa, surpreendentemente, do ponto em tudo, menos na lucidez.

Afirmativas cruzam seu caminho aqui e ali, em especial na descrição de suas performances e de seus dotes como garoto de programa. Sua anatomia é esquadrinhada com a autoestima de uma uva passa, enquanto seu amor próprio é mínimo. Mas ele sabe seu valor. Alex passa de “um bom aluno que pode vir a ser um astronauta quando crescer” , ou um michê, ou quem sabe um matador de aluguel, tudo num fluxo de incontinência verbal de três atos. “Tráfico” é um peça de falar sobre a dor. Sua saliva nos inunda e nos livra de muitas incoerências, teóricas e pragmáticas. É Foucault em gotas.

Ouvimos em detalhes fragmentos de um discurso amoroso espatifado. Seu falar passa por problemas familiares, dribla a memória de uma mãe que era uma santa, navega por uma medalhinha sagrada, salpica dados sobre o relacionamento conturbado com a sua namorada e sobre a ambição de ter uma moto envenenada. Blanco transforma alguns substantivos em cacos de um vidro afiado ao longo daquele memorial de um “eu” doído. Mas a culpa está por ali, como uma película.

No fervor da direção de Peralta, somos levados ao “Amarcord” de Alex por meio de um espaço cênico de (aparente) simplicidade, mas de plena harmonia, que foi cenografado por Gilberto Gawronski). Ali, passamos a entender que no amor, a subjetividade se lambuza no “talvez”. É o que se sente quando Alex fala sobre Francês, um professor que serve de bússola a um coração perdido, que foi despejado da casa da harmonia em autos de resistência das contradições sociais brasileiras.

Foucault se faz presente mais um vez no corpo a corpo com o palco, “Precisamos resolver nossos monstros secretos, nossas feridas clandestinas, nossa insanidade oculta. Não podemos nunca esquecer que os sonhos, a motivação, o desejo de ser livre nos ajudam a superar esses monstros, vencê-los e utilizá-los como servos da nossa inteligência. Não tenha medo da dor, tenha medo de não enfrentá-la, criticá-la, usá-la”, escreveu o autor de “As Palavras e as Coisas”.

Como experimento dramatúrgico com Foucault nas entranhas, “Tráfico” é a autópsia em corpo vivo do Estado sob o prisma dos hematomas gerados pelo abandono da segurança pública, do assistencialismo, da política corrupta. Aliás, como disse Foucault, “Édipo não se cegou por culpa, mas por excesso de informação”. O Édipo de Alex é silenciado por fake news de si mesmo.

Como experimento humanista, notável, “Tráfico” é o estudo de alguém que amou demais sem saber lidar com a aritmética do “talvez”. Sua triagem de desatinos resvala no Foucault que diz: “As pessoas sabem aquilo que elas fazem; frequentemente sabem por que fazem o que fazem; mas o que ignoram é o efeito produzido por aquilo que fazem”. Alex paga pelo que fez e paga mais caro pelo que fizeram dele.

Como teatro, “Tráfico” é a prova de que Torinni é capaz de alcançar uma zona assombrosa da invenção, sem medo da liberdade cênica, saindo dela consagrado. Seu exercício de doação ao Poeira é algo de que a gente não se cura.

Confira o serviço completo da peça!

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