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O Tempo de João Ubaldo ainda é brasileiro em “Viva o Povo Brasileiro (De Naê a Dafé)”

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Em meio à invisibilidade imperdoável que cerca a comemoração das quatro décadas do filme Sargento Getúlio (1983), mítica transposição da pena de João Ubaldo Osório Pimentel Ribeiro (1941-2014) às telonas, uma releitura teatral, em forma musical, de “Viva o Povo Brasileiro!” antecipa as celebrações dos 40 anos de lançamento de um dos marcos literários do escritor e jornalista baiano, que fazia da desconexão de subjetividades com a História um de seus motes.

“Já estou chegando, ou já cheguei, à altura da vida em que tudo de bom era no meu tempo”, escreveu ele em “O Conselheiro Come”. Esse é um “amarradinho” das crônicas de João Ubaldo Ribeiro, um de seus drops de Brasil, compilado em 2004, e já no caminho de volta às livrarias, ao mesmo tempo em que o realizador Carlos Diegues apara as arestas de “Deus Ainda é Brasileiro”, novo longa baseado em JUR. É a sequência do sucesso de bilheteria “Deus É Brasileiro”, lançado há 20 anos, e prestigiado por 1,6 milhão de pagantes. Mas nesse “está por vir” editorial e cinematográfico, o teatro brasileiro faz a festa, à força da releitura cênica proposta por André Paes Leme.

Viva o Povo Brasileiro - João UbaldoEncenador da memorável imersão rosiana “A Hora e Vez de Augusto Matraga” (2007), com Vladimir Brichta, Paes Leme faz do espetáculo “Viva o Povo Brasileiro (De Naê a Dafé)” uma epopeia canora. Na narrativa explosiva e antirracista, 30 músicas originais compostas por Chico César, a partir de letras inspiradas ou decalcadas da prosa de João Ubaldo Ribeiro, tomam conta do palco. A direção musical e trilha original são de João Milet Meirelles, da banda BaianaSystem, gravitando da cantiga romântica ao pancadão.

Condensação talvez seja o termo preciso para traduzir as quase 640 páginas do tijolo publicado em 1984 em uma narrativa de canto, dança, lamúrias, brados e estripulias dignas de desenho animado feitas por Hugo Germano em cena. Aliás, há sequências com ele (uma força da natureza em caras, bocas, gestos e gritos) que mais parecem um desenho animado do Tom & Jerry, igualmente divertidas. Germano é de uma destreza ímpar na representação da resistência. O humor trazido por ele salpica a peça em vários momentos, mas a tonalidade que impera é de levante contra a ignorância e a opressão. Paes Leme torna potável a cachoeira literária de Ubaldo.

Além disso, é notável o empenho da dramaturgia em preservar a trama na tradição de romances que investigam as linhas mestras da formação da sociedade nacional, vide “O Guarani” (1857) e “Macunaíma” (1928), como fez Ubaldo, mas acentuando sua verve satírica e reforçando a viga de denúncia que alicerça sua edificação. Fantasmas coloniais, surpreendentemente, saem do pretérito imperfeito de nosso passado trazendo com eles crimes da metrópole, sobretudo o racismo. Qual no livro o enredo desenvolve-se nos encontros e conflitos entre grupos escravagistas e as populações escravizadas que se empenham para preservar a dignidade.

No recorte proposto por Paes Leme, há uma essência feminista que aflora, sob a pulsão da peleja das mulheres negras contra os abusos, demarcada pela interpretação de Ju Colombo, Júlia Tizumba, Luciane Dom e Sara Hana. É uma espécie de voz central que serve de guia ao zeitgeist que inunda a montagem de historicidade e resiliência: a figura de um herói de múltiplas façanhas e múltiplas facetas encarnado (com esplendor) por Maurício Tizumba. É ele o avô protetor que será o guardião de sua gente conforme se cria uma sociedade quase secreta, o Povo Brasileiro, formado por uma irmandade de almas em diáspora.

A esse avô a peça atribui um sentimento que sintetiza as reflexões de Ubaldo: “A vida devia ser duas; uma para ensaiar, outra para viver a sério. Quando se aprende alguma coisa, está na hora de ir”. Percebe-se então essa sensação na maneira como Tizumba, com inteligência, é capaz de dimensionar a finitude num corpo lacerado por feridas históricas.
Certamente, parte dessas feridas se agravam com a nefasta figura de Amleto Ferreira, administrador de terras de jugo metropolitano branco, encarnado com carisma por Jackson Costa. O eterno Padre Lívio de “Renascer” (1993) regressa aos holofotes destilando inteligência na caracterização da velhacaria que sustenta a política nacional.

Deslumbrado pelos figurinos de Marah Silva, realçados na iluminação dionisíaca de Renato Machado, o público testemunha o microcosmo de um Brasil de anteontem ganhar corpo, alma e cantoria nos palcos.

Peça está em em cartaz no Teatro Riachuelo. Confira o serviço completo da peça!

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