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Pablo Larraín constrói um dos ‘terrir’ sofisticado fazendo de Pinochet um vampiro

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Poder e paixão, foram dessas duas matérias-primas principais que se constituíram as feituras dos maiores clássicos da dramaturgia, dos gregos até Shakespeare, e isso continua sendo o pilar da contemporaneidade na arte, talvez seja qual for sua versão. Pablo Larraín segue a cartilha à perfeição desde que surgiu, e em O Conde, com esses dois elementos que são vitais (contém ironia) para a manutenção de um projeto que pavimenta essa carreira como essencial não apenas para a América Latina, mas para o mundo cinematográfico de forma irrevogável. A estreia da semana da Netflix é aliás, até agora, o melhor título do catálogo de streaming de 2023.

Pablo Larraín
EL Conde. Alfredo Castro as Fyodor in El Conde. Cr. Pablo Larraín / Netflix ©2023

Após o mergulho no terror gótico para contar momentos derradeiros de Diana Spencer, vulgo Lady Di, no surpreendente Spencer, Larraín parece mais uma vez inebriado com o cinema de gênero, e constrói um dos ‘terrir’ mais sofisticados de que me lembro. Ainda obcecado em desenvolver novas texturas para a História como já o faz desde o exemplar Tony Manero, o diretor mais uma vez se aventura pela ‘vida e obra’ de uma figura histórica, e aqui a fábula é assumida por completo. Porém, a inteligência de alguém como ele sabe que para a fabulação ter a potência que se espera, ela precisa ter elementos do real que a reverberem. Transformar o sanguinário crápula Augusto Pinochet em um vampiro de 250 anos é uma sacada de mestre que não cabe em si, e por isso sua grandeza é amplificada.

Já passamos (ou deveríamos) ter passado da fase em que o cinema do chileno ainda nos causaria surpresa pela excelência técnica, mas O Conde eleva ainda mais o que já conhecíamos de seu trabalho de ourives. A fotografia em preto e branco, de Edward Lachman (Carol), só não nos causa maior impacto que toda a ideia de sua mise-en-scene, que homenageia imageticamente clássicos modernos como Entrevista com o Vampiro e a filmografia de um imortal como Carl Dreyer.

Aliás, quando a imagem clássica de Maria Falconetti parece reimpressa no plano ao passo que louva alguém Philippe Rousselot, é, certamente, que sabemos o quanto Larraín é um artista apaixonado por seu ofício, e o realiza com a chancela de um fã. Além disso, não há, na cartografia do roteiro, curva menor para contar esse acerto de contas entre um homem e o mundo que ele acha em débito com sua figura. Um crescendo de eventos que encadeiam de maneira tão acertada quanto bem alinhavada parece deter um sem número de elementos que serviram para nosso olhar ao cinema ser menos leviano.

A arte visual, que geralmente é relegada a algo menor, quando e se comparado à literatura, ao teatro ou à música, é sim capaz de registros de encantamento como vemos em O Conde, que usa a reverência imagética e verbal não apenas para emular outras obras e tempos, mas para principalmente continuar um legado artístico referencial.

Nesse sentido, Larraín se transforma também em um vampiro certeiro para ressignificar personagens que seriam facilmente tratados como bonecos sem vida em outros projetos (vide o plot twist do final, que reintegra uma figura já tratada em uma biografia anterior de maneira medíocre).

Com o que tem feito com períodos históricos, ou com figuras como Jacqueline Kennedy Onassis, o diretor de No aqui também resgata gêneros, resgata imagens e geografias que não foram devidamente cuidadas pelo fotograma. Sua vampirização não pleiteia a dissecação das qualidades das obras citadas para fins de benefício apenas particular, mas para uma manutenção posterior de sua política de reorganizar debates, acerca do Cinema ou do papel nefasto do Estado, condizente com o que está dialogando.

Apesar de muitos diferentes entre si, seus filmes não estão em comunhão apenas pelo estado de excelência que sua maioria representa. Suas obras conversam de modo fiel com a ideia de reapresentar algo estanque como a História contada e vivida sob um novo viés, seja aproximando com uma lupa sua lente dos eventos, seja transformando cada elemento vivido em alegoria, como em O Conde.

Fato é, em O Conde, estamos diante de um conto moral dos mais repetidos, a eterna sede por algo que sempre se teve e continua a faltar apesar da abundância, mas que Pablo Larraín sabe como renovar. Com humor indiscriminado, uma leitura tão aguçada do que sejam os códigos familiares diante da tragédia iminente, e um bom gosto estético que parece interminável, me pergunto como tal cineasta, que propõe tantas camadas de olhar a uma só obra (e a toda sua) ainda pode ser questionado como ele é.

Paciência, sobra mais linhas de boa vontade para acessar por quem tem interesse real em debruçar-se sobre algo vivo e tão cheio de metamorfoses, como O Conde.

 

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