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Afire, de Christian Petzold, fecha trilogia sobre reflexões

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Christian Petzold não de hoje produz reflexões sobre o humano a partir do Tempo em que ele explora, seja esse Tempo um recorte que melhor lhe for conveniente. Esse olhar que não julga o que conta, mas que se interessa com um carinho ríspido pelo que se conta, é a sua maneira de fabular, creio que ele imagine que essa é a sua função no cinema. Peças de fabulação, que mesmo envoltas com o passado, se relacionam com o hoje de maneira absoluta, respondendo às questões contemporâneas. Afire mais uma vez renova nossos votos com a sofisticação de sua investigação acerca dos recônditos sentimentos que os humanos podem produzir, quando observam o limite à sua frente.

AfireCom Afire, ele continua sua leitura sobre os elementos essenciais, depois de Em Trânsito (terra) e Undine (água), chegamos no fogo. Assim como nos longas anteriores, nenhum deles está disposto na literalidade, apenas. O fogo aqui anuncia sua chegada visualmente e paulatinamente, nos lembrando a todo momento que sua fúria está exposta, sem nunca deixar de também arder internamente. É uma semente de um tempo onde as fogueiras que um dia queimaram mulheres por ousar expor suas liberdades, hoje consome um mundo onde a liberdade precisa ser conquistada por todos. Na dúvida, esse fogo incessante é o sinal do desejo, mas também de que o desejo ainda é um tabu que os extremistas precisam combater, o desejo é o sinal de que estamos vivos e atuantes, tudo que a massa não precisa ser.

Em tese, trata-se de uma alegoria que também é um estudo do personagem, Leon. Entramos e saímos de Afire, e a impressão de que nem 50% dessa figura foi compreendida está cristalizada em tela. Quanto mais a narrativa avança, mais conhecemos o protagonista, e ainda assim mais inacessível e complexo ele se mostra. Leon é jovem, está começando a se estabelecer como escritor e, assim como o artista em formação, sua mente é a imagem da insegurança. E seu corpo, um retrato do homem comum em conflito com uma cultura do corpo que não precisa ser ostensiva para oprimir. Nenhum desses dados é óbvio e sublinhado do filme, mas sim uma construção repleta de sutilezas que o roteiro se empenha em desenhar, é como um quebra-cabeças cuja última peça parece nunca vir, para a felicidade de quem busca incessante sentido de descoberta em uma obra.

Petzold cerca seu protagonista de sombras para que ele possa continuamente tentar recomeçar, em um constante aprendizado, que gera novas capacidades de negar o acerto. É um homem à espreita, xeretando livremente um ambiente aberto às perguntas e respostas, como ele não as tem para suas próprias dúvidas, não interpela ninguém. E segue errando em looping ininterrupto, mostrando uma capacidade inesgotável de produzir provas contra si.

Afire é fascinante porque estamos ao lado de uma pessoa cujo fel não interrompe seu fluxo mesmo quando fica claro que seu engano esteja explícito. Uma ode silenciosa a um tipo cuja humanidade está em não conseguir observar que o desejo tem momento exato para florescer, cuja inspiração arrogante não o deixa perceber que suas limitações não estão em sua arte, mas em sua alquebrada personalidade.

Aliás,  o tratamento fotográfico do filme, que sugere essa movimentação ditada acima de uma espécie de perseguição constante de um personagem pela imagem, é o que carrega essa conotação realista ao que vemos. A fotografia de Hans Fromm, tradicional colaborador de Petzold, conduz a experiência até esse cúmulo da visão – o que vemos é o que Leon vê, da forma como ele vê, deformada ou não. O que a imagem revela é feita aos poucos, no compartilhamento do detalhe e da motivação, ao justificar os caminhos errados de um protagonista em processo de aprendizado. Conforme partes da realidade se mostram da maneira redescoberta com que ele enxerga, Afire se abre para sensações de muitas ordens. A principal delas é o arrependimento que não cessa, e transforma o tratamento com que o espectador julga o que vê.

O elenco, diminuto, tem em Paula Beer (de Frantz) uma intérprete ideal dessa constituição de descobertas múltiplas. Já tendo protagonizado o longa anterior de Petzold, a atriz sabe que precisa costurar o que mostrar e o que guardar, para que o espectador receba as informações na hora que a narrativa precisa. O dono de Afire, no entanto, é Thomas Schubert, com sua presença interpretativa constante, e de sondagens múltiplas. Vindo de um título igualmente desafiador como Axioma, Schubert captura esse homem que não se sente confortável consigo mesmo, e por isso provoca ondas de desconforto em tudo por onde passa. Com a última cena do filme, observamos que talvez um círculo completo tenha se fechado em torno dessa personalidade, um porco espinho que machuca a si mesmo ainda mais que aos outros. Mas apenas talvez mesmo.

 

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