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Monster traz obra de Kurosawa serve como referência narrativa

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A frase-chave das chamadas que a distribuidora Imovision abraçou para divulgar Monster não poderia estar mais correta: quem é o monstro? Essa é a ideia que vai sendo alimentada pela produção dirigida pelo grande Hirokazu Kore-Eda e que chega aos cinemas essa semana.

Monster

A monstruosidade é um conceito subjetivo e relativo, dependendo de quem e como age, e a forma como o faz. Tudo vai depender do olhar e do ângulo de por onde esse olhar é lançado no quadro geral, e como vamos destrinchar as muitas maneiras de desenvolver um pensamento analítico sobre os eventos. O resultado é uma fascinante variação do que o conterrâneo de Kore-Eda, Akira Kurosawa, criou há mais de setenta anos.

Em Rashomon, um dos maiores diretores japoneses da História modificou a fruição narrativa aplicando a um mesmo mote de eventos uma gama de possibilidades. Seus personagens apresentaram diferentes versões para o mesmo ato, e apresentam tais visões em cena, criando uma ilusão sobre o que é a verdade e onde ela reside, sendo que cada um de seus relatos apresenta uma fatia de certeza. Vencedor do prêmio de melhor roteiro em Cannes, Monster não apenas destrincha um grupo de personagens envolvidos em um processo contínuo de agressão escolar, como dá a cada envolvido um registro de seu lado da história.

Essa não é a primeira vez que a obra de Kurosawa serve como referência narrativa a uma produção, mas aqui os entrechos são perpassados por algo que é anti-gênero. Kore-Eda, apesar de já ter passeado pelo melodrama (Pais e Filhos) e pelo suspense (O Terceiro Assassinato), é adepto do naturalismo, como todos sabem. Monster não apenas abraça seu coloquialismo tradicional, como o faz como contraponto do que a moldura abarca, que é a solução de um mistério ou algo que o conecte ao cinema clássico narrativo. É um roteiro onde as teias possíveis fazem nascer o que há de mais humano em seus personagens, quando revela não apenas seus segredos, como principalmente o que os aflige e permanece escondido.

Todas as motivações de seu roteiro parecem um passeio por sua filmografia, pois falam de maternidade, de amizade entre crianças, da falta de tática na interrelação e de como adultos dificultam um processo de autoconhecimento, das motivações para a apresentação de um crime, mas tudo isso soa incrivelmente natural.

Jogado em um campo minucioso onde cada ação é interconectada a sua reação, mas isso avança de núcleo a núcleo, Monster mostra como a sofisticação de um autor está sempre sujeita a avanços que não negam suas criações anteriores. Isso é comum a alguém com talento inesgotável como ele (mas que não está imune a derrapadas, recentes inclusive), mas após Assunto de Família, é bonito perceber que sua sensibilidade continua não estando ligada intrinsecamente ao escrito, como tantas vezes foi acusado no passado, mas também à forma.

Não deixa de ser uma provocação que, cada vez mais, Kore-Eda utilize do seu manancial mais particular para forjar obras ousadas esteticamente. Aqui, o incêndio que abre suas ‘fábulas’, é uma maneira dele dizer que o mais intenso já se consumiu, e o mundo agora precisa lidar com o que sobreviveu ao seu calor. Não são cinzas, definitivamente, mas as brasas incandescentes de um novo contexto de realidade. Isso não é apenas um recado ao estado das coisas de seus personagens centrais, mas um recado ao extra filme: precisamos aceitar e abraçar o calor que vem de fora. Ele não irá parar, e suas consequências são o nascimento de uma geração ardente de desejo, de vontade de se comunicar, e não calar. Monster nasce da consciência de seu autor para um mundo menos gélido, onde a conexão precisa gerar empatia e conforto.

Não é apenas do premiado roteiro de Yûji Sakamoto (que acabou de lançar Amor em Águas Turvas, na Netflix) que virá o auxílio luxuoso, mas do lendário Ryuichi Sakamoto na trilha sonora em seu último trabalho, com uma fina composição que não pesa a produção, ao mesmo tempo em que acentua sua profundidade. Aliás, a montagem do próprio Kore-Eda é outro ponto fundamental em que um filme como Monster precisa ser considerado, pois trata-se de uma espiral onde o mesmo evento é recontado por três vezes, em três pontos, onde o ritmo não apenas precisa contribuir para o todo, como direção e montagem precisam, conjuntamente, criar artifícios para retrabalhar o que já foi visto. É exatamente nesse lugar que percebemos a genialidade de um autor, em recontar a “mesma coisa” mais de uma vez, e sempre acrescentar camadas, subversões e poesia extra.

Se os pequenos Soya Kurokawa e Hinata Hiiragi são a alma de Monster, o corpo do filme é composto pelo excepcional trabalho dos adultos. Sakura Ando e Eita Nagayama oferecem perfis cheios de sinuosidades, nunca expressam menos do que deveriam, e ele em particular nos parece uma eterna descoberta; cada nova cena, seu personagem parece maior e mais complexo, e Nagayama nunca deixa a peteca cair. Yûko Tanaka encena também uma personagem trágica que o roteiro não cansa de abrir suas camadas, para mostrar sempre uma ainda mais densa criatura.

Dos grandes filmes do ano, Monster é um convite para renovação de nossas certezas em relação a Hirokazu Kore-Eda como autor, que aos 61 anos, mostra invejável domínio do que quer contar, e de qual é a melhor forma possível de apresentar uma história. Certamente, um trabalho que só gigantes como ele conseguem atingir.

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