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Tia Virgínia faz um mergulho profundo nas relações familiares

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O cinema brasileiro está se especializando em cineastas que conhecem e adentram o universo de “pessoinhas”, codinome particular que costumo dar a filmes que conseguem perfurar uma bolha esperada do naturalismo, e transformar o que não se poderia imaginar em arte. Apesar da definição poder aparentar algo fácil de alcançar, um filme com “pessoinhas”, geralmente tem uma linguagem prosaica e um despropósito de ações e ambições narrativas. Como os filmes de Mike Leigh, aqui uma nova geração alcançou um lugar dentro dessa seara, e no caso de Fábio Meira, um avanço na sofisticação fica evidente assim que acessamos Tia Virgínia, o filme mais premiado do Festival de Gramado deste 2023.

Tia VirgíniaVindo de As Duas Irenes, filme tão familiar quanto seu novo, Meira lá tinha interesse em filmar também (ou mais precisamente) um olhar juvenil sobre as mudanças de percepção da ordem das coisas. Em Tia Virgínia, seu abraço é completo de empatia e compaixão por todos em cena, um grupo de personagens caído em desgraça de diferentes proporções. Ainda assim, é uma família cheia de tridimensionalidade, rasuras e uma demonstração clara sobre o quão universal pode ser uma história. Mas como se diz, quanto mais você falar de sua aldeia, maior será sua compreensão no mundo, acontece isso aqui também – uma conexão imediata do espectador com tudo que é visto.

É, certamente, uma banalidade muito específica, que nos faz adentrar de imediato aquelas 24 horas junto a Virgínia, Vanda e Valquíria, e a cada novo gomo apresentado, mais certeza de que Meira conseguiu capturar um espírito universal familiar. Em cena, estamos na véspera de Natal, uma noite que se entende de congraçamento, perdão e renovação de laços, ou justamente o período onde o tempo se mostra incapaz de apagar o que foi cometido, seja no tempo que for. E o Tempo… esse senhor tão bonito, como cantado por Caetano Veloso… , é justamente sobre a sua incapacidade de avançar, eternamente se posicionando como um espelho do hoje, que Tia Virgínia centra seu pilar.

O Tempo como agente de todas as coisas, quando aplicado ao ser humano da maneira mais literal, representa a passagem dos anos e a chegada de um poderoso marco: a velhice. E qual não é a imensidão de coragem de Meira ao tratar de tal estado sem cair na pieguice, para sim desafiar um olhar de desconfiança social e mostrar que ela chega para exatamente todos? Tia Virgínia não tenta ser uma obra definitiva sobre coisa alguma, e é exatamente por seu despojamento, que acaba nos afetando particularmente com os conflitos ancestrais de um núcleo familiar. Todo o rancor que será ativado exatamente pelo cansaço de tantos anos, de tanta subserviência, que em algum momento se transforma em explosão.

Antes de mais nada, é preciso também reconhecer que Tia Virgínia não seria tudo o que é apenas com identificação e reconhecimento, caso o talento coletivo não tivesse sido empregado. O trabalho de Leonardo Feliciano na fotografia, por exemplo, remete ao melhor que o cinema estadunidense fez há 50 anos atrás, resgatando as texturas e cores do movimento conhecido como Nova Hollywood e promovendo, também ele, em um reencontro do espectador com outro tempo. Assim como a direção de arte, tão detalhada e cheia de mistérios específicos que só uma viagem em direção ao passado poderia nos trazer, de referências. É um mergulho muito profundo na alma daquelas pessoas através da forma da obra, que revela um grupo aprisionado por um relógio prestes a dar novo defeito.

A cereja do bolo atende por um nome: Vera Holtz. Com o auxílio luxuoso de um dos melhores elencos de 2023, Holtz tem seu momento maior da carreira e brilha com intensidade, resgatando uma pessoa que todos nós conhecemos e gostamos, gritando por ajuda. Ao lado de Arlete Salles e Louise Cardoso, Holtz nos mostra o quanto foram subaproveitadas pelo cinema e o que podem fazer quando encontram tal repertório.

Tia Virgínia é um presente a um público ávido por identificação com qualidade irrestrita! Filme mostra o que acontece quando não queremos mais ver o que vemos no espelho. A recusa categórica do que se é, para tentar encontrar o que só o futuro poderá nos dizer que somos. E se o passado tem um tamanho, o futuro não – ele pode ser o que a gente quiser.

 

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