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Anatomia de uma Queda aborda machismo e feminismo em filme de tribunal

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O que é discutido quando uma mulher está na berlinda? Suas possíveis motivações, seus prováveis feitos, ou sua condição feminina estará em cheque continuamente? Tem um tanto de fascínio (e muito pouco de presunção) que Justine Triet se identifique um tanto com a protagonista de seu filme, nada mais que um dos mais premiados de 2023, Anatomia de uma Queda. Se alguma justiça houvesse, a invenção analítica espelhada que ela promove não comportaria tentativas de alcance, mas o próprio em si. Sem qualquer condescendência, estamos diante de uma produção que beira o irretocável porque sua voz sai da obra e captura não apenas o olhar sobre um tempo, mas principalmente a auto análise de uma artista jovem em seu auge, o que não a impede de conjecturar apenas os pontos certos.

Anatomia de uma Queda

Um olhar leviano (e com o toque certo de maldade e escárnio) reduz o tanto do impacto produzido aqui a uma mera reprodução de gênero. Ainda que Triet agarre com sabor as molas do ‘filme de tribunal’, sua visão complexa paira acima do tradicional com força. A visão da normatividade, venha de qualquer gênero que vier, não deixa de carregar uma dose maciça de machismo estrutural na desqualificação de Anatomia de uma Queda. Porque não estamos colocando julgo em material descartável que remete a um cinema de outrora, mas de uma moderníssima versão feminista de conversa múltipla, que vai além do que se vê. Arranha até mesmo uma espécie de metalinguagem autoreferencial, mas que não deixa de colocar em pauta todas as mulheres.

O que está no cerne da discussão explícita do roteiro de Triet e seu companheiro, o também cineasta e ator Arthur Harari (10.000 Dias em Onoda), é a culpa, e suas muitas ramificações de abrangência. Não apenas aquela decidida em uma corte, mas o tanto que martela no inconsciente, diante de fatos que não temos acesso. Porque sim, Anatomia de uma Queda é um filme sobre tantas coisas que é até difícil mensurar até onde vão seus tentáculos, além disso, também trata a respeito do que nunca será visto, ouvido, sentido ou sabido com certeza, por ser tão particular e íntimo, e estar incansável ao testemunho. Então provas, convicções e certezas muitas vezes são infundadas, no âmbito da vida real e das bifurcações aparentemente impossíveis, mas existentes.

Vencedor da última Palma de Ouro, Anatomia de uma Queda parece sempre ir além das aparências – de gênero cinematográfico, de expectativas, de capacidade observacional. Chega a ser irônico que algo de aparência simples revele sempre e cada vez mais, sobre si e sobre seus personagens. Com uma sutileza tão sofisticada quanto funcional, Triet provoca em seu filme mais do que uma mera sessão de análise profissional faria. Porque seu cinema (e isso já estava impresso em Sybil) trata da necessidade de comunicação, e da impossibilidade da mesma em situação extrema de qualquer ordem. Aqui, quando sua protagonista não pode mais contar com ninguém a não ser sua própria palavra, sua autora também decide brincar com as percepções sobre o que é importante no audiovisual, o áudio ou o visual. Não precisamos de uma escolha, mas os sentidos muitas vezes não estão completamente disponibilizados.

Contribuem para o acerto absoluto da produção não apenas essa discussão do qual somos testemunhas (em múltiplas possibilidades), mas um dos elencos mais bem servidos do ano. Milo Machado Graner e Antoine Reinartz são coadjuvantes impressionantes em lugares muito complexos, o filho da vítima e um advogado de acusação muito inflamado. Ambos seguram dois lados opostos do filme, uma espécie de ‘candura’ muito difícil de executar, contraposta a uma ferocidade quase sanguinária de um homem que representa muito do que provavelmente é a linguagem que Triet persegue para exemplificar. Especialmente para o ator de 13 anos, existe uma forma muito sutil de alcançar os módulos que o roteiro propõe, sem torná-lo vítima das circunstâncias.

Todas essas camadas, no entanto, são amplificadas pela performance sobrenatural de Sandra Hüller, que teve o ano mais especial de sua carreira. A atriz de Toni Erdman nos carrega para uma humanidade que Anatomia de uma Queda questiona a todo tempo. Como a personagem é quase uma porta-voz de Triet, como a nos guiar dentro de questões muito prementes da atualidade, seria fácil de perder a postura diante de uma carga excessiva de informações, internas e externas. O resultado é de muita bravura e gana, um estado de espírito natural a quem se vê acusado em um esquema de crescente misoginia. Comparando essa atuação com o que veremos mês que vem em Zona de Interesse, temos a noção do que é uma atriz com imensas possibilidades, que aproveita pontos díspares de performance.

Acho verdadeiramente uma pena quem olha para Anatomia de uma Queda e vê uma plataforma vazia de comunicação, uma ideia datada e repetida de abordagem de um gênero. O filme de tribunal sempre existiu, mas quase nunca foi palco para que observemos o lugar onde as mulheres são culpabilizadas independente do resultado de um julgamento, que é o cotidiano da maioria delas. Uma sessão conjunta com o igualmente espetacular Saint Omer de Alice Diop é o que eu poderia deixar de mais acurado em dica, além de tentar mostrar que a subversão de olhares é sim uma maneira muito suculenta de realizar cinema, e de reconfigurar parâmetros.

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