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Mal Viver: João Canijo leva uma colisão emocional aos cinemas

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O diretor João Canijo lançou um desafio no último Festival de Berlim. Esteve em suas mãos talvez a experiência mais curiosa e inventiva do evento alemão passado, o díptico de filmes Mal Viver e Viver Mal. Trata-se de um projeto profundíssimo todo ambientado em um mesmo local, um hotel de luxo em um período fora de estação. Comprados pela Zeta Filmes, eles serão lançados com um mês de separação de um para o outro, e sua abordagem sobre o mesmo campo de visão se divide e rivaliza em suas intensidades. Sem uma ordem específica em que precise ser visto, essa parte foi vitoriosa no Prêmio do Júri em Berlim, e também o candidato de Portugal ao Oscar deste ano. Mas o que é exatamente esse projeto?

Ambientado nesse espaço de não permanência, o título a ser lançado investiga os três quartos ocupados durante um período, e a vida dos seus hóspedes. Mal Viver contextualiza a vida da família que administra o hotel, um grupo de mulheres de gerações diferentes e com intensos conflitos, nem sempre contornáveis. Em comum estão laços maternos que estão em cheque, mas para onde não se enxerga soluções a curto prazo. Por trás de uma descrição banal, o que Canijo articula é uma ideia muito sofisticada de inúmeras questões de sororidade, cujo escopo vai se fechando para mostrar um grupo de deformidades emocionais.

Antes de ser fascinado pela construção de mundos complementares, o que Mal Viver apresenta, solitariamente, é um grupo de cinco mulheres que, obrigadas ao convívio em um ambiente cada vez mais opressor, resvalam continuamente na exposição de suas mágoas. Aos poucos, compreendemos que o cansaço coletivo se estende entre as personagens, invade os espaços de mútua convivência, e salta da tela para alcançar o espectador. Essa é a intenção real, de ambientar quem assiste ao mesmo estado de espírito do que vemos. Perdidas entre mágoas prestes a explodir e uma catatonia que se abate vez por outra, estamos prostrados diante da invasão de seu autor a um campo minado de interconexões, mas que não ousa revelar-se.

Além disso, há a presença frequente da morte em uma espreita constante que se revela cada vez mais presente. Desde a abertura, temos a certeza que algo ali está deixando de existir, a partir de uma tentativa de suicídio mal sucedida. A ideia do hotel, que é tão opulento quanto decadente, também prenuncia uma espécie de passagem que está em vias de se cumprir. O que resta a partir dos escombros emocionais e físicos prestes a ruir também é um campo de investigação de Canijo, através de diálogos expressos de maneira naturalmente dolorida, e incisiva. Como acompanhar a um longo velório seguido de uma dor devastadora e longa, Mal Viver não nos poupa incômodo, e o modus operandi da própria produção é a de tentar nos inserir em um momento com cara de capítulo final: tudo está morrendo.

Independente do campo que ultrapassa a melancolia para alcançar um sentido de tragédia iminente, Mal Viver faz parte de uma ideia do novíssimo cinema português que pretende restaurar sua produção, dando-lhe novas possibilidades de espaço de discussão. Esse é um daqueles casos onde o que está de material formal é tão uniforme e dialoga tão bem com o campo emocional construído, que sua ousadia em dividir-se em dois parece apenas um capricho arrebatador, em uma solução ainda mais impactante que a decisão de olhar para dois lados paralelos. É, certamente, um projeto praticamente irretocável, que encontra nessa primeira parte todos os elementos necessários para observar o fel amargo que reside na solidão e no vazio da rotina.

Assim como no provável indicado ao Oscar, Zona de Interesse, paralelo à dramaturgia se desenvolve com requinte para desnudar a competição natural que existe entre pessoas de uma mesma família envolvida em negócios, o trabalho de som de Mal Viver é de complexidade raras vezes vista. Vazam os sons de salas para outras, o que nos permite compreender duas frentes de ação; além das frestas que observamos cada vez mais de perto e que separam (só nas aparências) funcionários de hóspedes. É como se estivéssemos diante de um mosaico em 3D, que podemos acompanhar sobre muitos campos possíveis, e que revelam não apenas mais sobre o que se vê e ouve, mas principalmente sobre o campo geral de desespero mudo onde se encontram os dois mundos. Além disso, não é necessário que se choquem, porque o espectador tem a banda sonora precisa para entender que essa colisão emocional está acontecendo ininterruptamente todos os dias, e não sobrarão muitos sentimentos vivos.

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