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“Pasolini no Deserto da Alma” constrói narrativa pela intimidade de um artista polêmico 

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Em seu recorrente olhar sobre o passado da cinefilia, a Berlinale, hoje em sua 74ª edição, deu destaque a um clássico de espírito neorrealista (ainda que tardio) chamado “Mamma Roma” (1962), citado como referência por cineastas Queer da contemporaneidade, como Levan Akin, num indicativo do quão pertinente segue sendo a obra de Pier Paolo Pasolini (1922-1975). Seu longa-metragem do início dos anos 60 – no qual uma garota de programa tem seu projeto de vida atropelado por uma intriga moral – é um dos destaques de uma obra capaz de devassar a mediocridade inerente à castração dos prazeres e das empatias. Aliás, essa obra plural (estendida para o teatro, a poesia e a prosa ensaística) ganha agora os palcos brasileiros, num espetáculo de tom biográfico sobre a vida e o pensamento do realizador italiano. Comovente, “Pasolini no Deserto da Alma” estreou pouco antes do carnaval no Glauce Rocha, parou para curtir a folia e regressa ao mesmo espaço neste fim de semana, onde fica até o início de março.

Sua dramaturgia – escrita, depurada e encenada por Francis Mayer – se mantém em sintonia com um desígnio pasoliniano básico: “Eu sei o nome dos responsáveis. Eu conheço todos os nomes e todos os fatos dos quais são culpados. Eu sei. Mas não tenho as provas. Não tenho nem mesmo os indícios”. Nessa frase, o cineasta por trás de “Medéia” (1969) e “Édipo Rei” (1967) traduz seu espectro judicatório em relação às opressões sociais de uma Europa afogada em preconceitos. Entre eles, está a homofobia, um dos males que o condenaram à morte, num suspeitíssimo assassinato nas mãos de um michê. Mayer esquadrinha essa peste associada à intolerância de formas sagazes em sua peça.

Muitos dos acertos do dramaturgo estão calçados no desempenho infalível, estruturado no limite entre a ferocidade e a ternura, deo ator Maurício Silveira. É ele o Pasolini teórico e poeta sobre quem a Berlinale tem falado para seus frequentadores ao testemunhar a chegada de um dos maiores sucessos do realizador ao streaming: “As Mil e Uma Noites”. Ganhador do Grande Prêmio do Júri do Festival de Cannes, de 1974, esse longa pode ser visto hoje na Amazon Prime do Brasil. Aliás, falando de Berlim, Pasolini ganhou o Urso de Ouro em 1972, com ‘Os Contos de Canterbury”, que acaba de ganhar uma edição em DVD (nova) em terras germânicas.

Por lá, ele nunca sai de moda. A julgar pelo bom trabalho teatral de Mayer, no Brasil ele também não tem prazo para desencantar. Não por acaso, no Festival do Rio de 2023, seu legado inspirou o curta-metragem “Celebrazione”, de Luiz Carlos Lacerda (o Bigode), que traz Erom Cordeiro no papel de Pasolini. É um filme que caça um merecido espaço em tela hoje.

Bigode foi um dos espectadores que cruzaram com o Rota Cult numa sessão lotada do Glauce Rocha, no qual o texto de Mayer e a luminosa composição de sua trupe foi ovacionada. Essa conversação do idealizador de montagens como de “Ângela Maria – Lady Crooner” e “Cazuza – Jogado A Teus Pés” com o audiovisual se afina e se refina, apresentação após apresentação, graças a uma iluminação bruxuleante (e intimista). A peça arranca feroz a partir do segundo inicial, quando “Iron Man”, de Ozzy Osbourne, ecoa pelo charmoso teatro do Centro, como música de abertura. Essa trilha sonora traduz a essência férrea de Pasolini, que foi inimigo jurado do fascismo.

Simpático ao proletariado sobre todas as coisas (“Filhos de operários merecem perdão”, dizia) Pasolini tem sua intimidade explorada por Mayer numa mirada política, porém, romântica. Apoiado na esgrima fina de Silveira com a palavra (e, em especial, com os silêncios), Mayer revive a peleja incessante do realizador de “O Evangelho Segundo São Mateus” (1964) pela livre expressão e recria toda a sua luta para fazer da arte um espaço de transgressão. Fala de seus amores e recorda os percalços que marcaram sua obra até ele ser assassinado aos 53 anos, na praia de Óstia.

Sempre provocativas, as múltiplas façanhas estéticas do realizador de “Pocilga” (1969) e “Teorema” (1968) são revisitadas por Mayer a partir de uma estrutura narrativa confessional, ao qual o dramaturgo engata uma conversa de Pasolini com o público, em tom de desabafo. Num rasga-coração devastador, Silveira regurgita pérolas como “Paraíso é um projeto de que de Deus desistiu”. Os relacionamentos do cineasta são retratados no texto a partir do trato com dois amores cruciais de sua história pessoal: Ninetto Davoli e Giuseppe Pelosi, encarnados por Léo San e Diego Rosa. Rose Scalco entra em cena em dois papéis, numa atuação madura e potente.

Saiba mais sobre a peça!

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