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Andrew Haigh adapta romance japonês para a realidade britânica

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Andrew Haigh não é um cineasta qualquer, e nós notamos isso quando ele escolhe filmar um romance japonês, adaptando-o para sua realidade britânica. Ao escolher, em contexto pós pandêmico, versar sobre a solidão das grandes cidades, sobre o vazio que se abate sobre nós mesmo rodeado de possibilidades, o cineasta parece entrar em uma tessitura dramática com a qual sua filmografia vinha conversando. Todos Nós Desconhecidos é, surpreendentemente, uma forma de resetar o tempo mecânico para observar o tempo dentro de cada um, e de como as molas temporais mudaram de 2020 para cá. Sem tocar em tema que denunciaria o próprio registro do tempo, sobra o olhar metafórico sobre o que não pode ser dito, por um certo viés de anacronismo – afinal, estamos aqui em algum lugar dos anos 80.

Andrew Haigh

Adam é um símbolo de uma geração LGBTQIAPN+ cada vez mais transparente. Ou seja, apesar de ser ambientado há 40 anos, Todos Nós Desconhecidos não mede esforços para nos situar em 2024. Um homem solitário, deslocado de sua orientação, isolado de laços afetivos e que luta para encontrar um sentido nas suas escolhas. Apesar de vender interatividade e extroversão, o universo ‘queer’ é cada vez mais representado por figuras desconectadas da padronagem coletiva, e com isso perderam o referencial de sua geração. Nesse sentido, Andrew Haigh constrói uma narrativa absolutamente consciente de uma fatia existente e carente de alguma representação, já que nos acostumamos a encontrar no cinema gays muito felizes ou com tristezas de ordem muito prática.

No entanto, algo pode ter se perdido na tradução, no caminho entre símbolos orientais de representação e uma lógica ocidental, de absorção emocional e uma certa desconexão com tais valores. Por mais que exista uma louvável observação de um personagem que a arte não está mostrando com a frequência que deveria, assim Todos Nós Desconhecidos não o traveste bem, em seus propósitos e inclinações. Os sentimentos de Adam são genuínos, mas mesmo em uma realidade oitentista, suas motivações parecem simplistas e repetitivas para um homem de mais de 40 anos, gay, que está assistindo a catástrofe provocada pelo vírus HIV em seu tempo. É fácil de empatizar com o que ele sente, mas não com o que ele faz, ou como faz.

A construção imagética de Haigh para Todos Nós Desconhecidos também soa artificializada, se colocarmos sua filmografia como parâmetro ou com o cinema britânico no geral. Mesmo um cineasta alemão indo até uma narrativa e vivência japonesas teve uma compreensão melhor do seu entorno do que a transposição contrária feita aqui; obviamente a citação diz respeito a Wim Wenders e seu Dias Perfeitos. Sem comunicação com sua própria história, Haigh parece se inspirar nos piores momentos de Naomi Kawase (aquele flerte com a cafonice de Esplendor e Sabor da Vida) e sugere esquecimento com o que já fez, em momentos de brilho absoluto, como em 45 Anos e em sua estreia, o pulsante Weekend.

Aliás, citar Weekend em uma análise de seu filme novo, inclusive, parece um ataque gratuito. Tudo o que o filme de 2011 acertava em ritmo, condução, aplicação de sua contemporaneidade, é uma aula a qual Todos Nós Desconhecidos não aparenta ter compreendido em sua totalidade. Lógico que a relação que se estabelece entre Adam e seu vizinho Harry é absolutamente crível, e os encontros dos personagens são o que há de melhor na produção. Quando o filme sai dessa interação genuína entre seus protagonistas, o que mais fica evidente é esse teor falso sobre todos os elementos com a iluminação carregada, a relação com os pais que gira em círculos, o tom monocórdio que é tratado a relação do personagem central com o mundo.

Dessa forma, me parece que, diferentemente de Wenders, Haigh tentou transpor para o Ocidente traços e valores que fazem sentido somente quando estão em confluência com a realidade do livro que o inspirou, um romance japonês escrito por Taichi Yamada. Na confusão de tratamentos, Todos Nós Desconhecidos sobrevive graças a sensibilidade que é alcançada pelo seu elenco, no que Andrew Scott é o maior representante.

Com um dificílimo retrato em mãos, que poderia pender para o dramalhão em qualquer deslize, o ator de Fleabag está perfeito em cena, dono de uma miríade de sentimentos que se sobrepõe ao olhar carregado de seu diretor. É a prova de que Haigh, mesmo em um momento de escorregão, ainda escalou à perfeição seu filme, e deu ao ator de 47 anos a maior visibilidade de sua carreira. O resultado é uma atuação rara, cheia de complexidade e que vale a pena ser conferida, chegando a nos confundir em relação ao teor geral.

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