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Lilith, de Bruno Safadi, aposta no sensorial como porta de entrada de suas experimentações

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Os mitos bíblicos de Adão, Eva e Lilith são observados por Bruno Safadi em seu novo filme, Lilith. Bruno é um dos mais instigantes cineastas brasileiros a surgir nas duas últimas décadas, e sua filmografia é um dos motivos pelo qual deveríamos ter orgulho do cinema brasileiro. Não tem a ver com seu trabalho ser de excelência (e, não raras vezes, o é), mas pelo que ele entrega de tão fascinante, em muitos sentidos. Junto com nomes como os de Guto Parente, Pedro Diógenes, Gabriela Amaral de Almeida, Anita Rocha da Silveira, Marcus Curvelo e tantos outros, Bruno se diferencia por criar um recorte muito particular dentro do que é produzido em nossa cinematografia. São títulos cheios de perguntas, que se recusam a apresentar material pronto para a reflexão da análise, que investiga a linguagem sem concessões, muitas vezes de maneira radical.

Aqui é uma dessas vezes. Ainda que o mergulho seja difícil e inesperado, cada gota espalhada pela narrativa composta por ele, Vera Egito e Fábio Andrade compensa. Sua autoralidade não é restritiva, e sim uma possibilidade de avançar em uma história de comum acesso prévio sem gesso, e com liberdade estética. Quem já o conhece de filmes como Meu Nome é Dindi (o primeiro vencedor da Aurora, a mostra competitiva de Tiradentes) ou os filmes da ‘Operação Sonia Silk’, sabe o que esperar. Aos demais, saibam que a absorção não é opcional, ou estamos dentro do jogo ou não estamos. Mas com elegância, Safadi consegue ministrar suas imagens como um delicado regente, aproximando o público na base do carinho.

Lilith aposta no sensorial como porta de entrada de suas experimentações, mas o que é metaforizado imageticamente pelo filme, é de alcance universal. Lilith foi a primeira mulher de Adão, que foi originada sem precisar de qualquer parte dele, diferente de Eva. Isso faz dela uma figura de tamanha independência, que coloca a relação seguinte desse primeiro homem da Humanidade em cheque. Nada disso é narrado da maneira tradicional, mas utilizando corpos e espaços cênicos para agrupar a gama de sensações que tal história quer explorar. A partir de algo já recorrente, com personagens que são parte integrante de qualquer discussão, o filme apresenta uma forma de nos condicionarmos aos códigos de hoje, como as curvas do patriarcado, o direto ao feminismo e uma relação entre homem e mulher que mostra suas possibilidades além da época.

Para tal efeito, Safadi conta com um trio de atores especial em cena, que precisa abrir mão de discursos propriamente ditos ao expor suas discussões em ações sem diálogos, em olhares possíveis, em interação efetiva.

Isabel Zuaa (de As Boas Maneiras) é a personagem-título, que já se apossou do nosso cinema e faz dele um espaço de sonho e brincadeira, em potente descoberta corporal. Renato Góes (de Legalize Já!) é um Adão pronto para 2024, ainda que sua corporificação seja do passado, o ator mostra todo seu arsenal que a TV não utiliza em um homem que nada deve a nenhum outro. Nash Laila (de Amor, Plástico e Barulho) merece que o cinema seja tão generoso com ela, quanto ela é com ele, e os motivos são o que mostra aqui, uma personagem que cresce quando Lilith é acionada, e que acaba por corresponder muito bem aos encontros.

Os signos originários do universo estão todos em cena. A serpente onipresente, a macieira carregada, a costela extraída de Adão, não faltaram os elementos tradicionais, mas não deixa de angariar novos olhares, como o eclipse total. Safadi sabe que precisa manter alguns laços intactos para que o público associe todos os códigos tradicionais às suas releituras e acréscimos. O resultado é um filme curto (costumam ser as obras do diretor) mas de impacto visual e narrativo sem dúvida, que vai empolgar quem estiver acostumado com a linguagem do seu autor. Mesmo que a história ande em círculos aqui e ali, Lilith é mais um desses bichos raros a estrear no nosso circuito.

A fotografia de Lucas Barbi (de Capitu e o Capítulo e Os Primeiros Soldados) é um trabalho que emoldura tanto as passagens oníricas quanto o investimento na concretude, e permite que Safadi tenha segurança para apresentar seu olhar que coloca a tradicional sociedade de hoje em contato com mitos históricos. Através de Lilith, seu diretor empreende nova fabulação visual sem perder seu registro com o hoje. Essa é a forma mais acertada de analisar sua obra, compreendendo que o tempo não muda a ordem das coisas, e que reler fábulas não trata exatamente de manter suas fadas, apenas deixa claro que as coisas não mudam.

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