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“Lygia” é um rito teatral de espreita sobre os processos de criação da artista

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Camille Claudel, produção francesa indicada a dois Oscars, estreou no ano em que a artista visual Lygia Clark morreu: 1988. Não é por essa interseção de datas que o filme quica na memória durante a encenação de “Lygia”, um rito teatral de espreita sobre os processos de criação da pintora, escultora e pilar da “não arte”. O paralelismo vem da forma peculiar com a qual a atriz Carolyna Aguiar, esculpe os hiatos entre as muitas palavras que regurgita. É, certamente, uma forma muito parecida com o falar de Isabelle Adjani no longa-metragem de Bruno Nuytten. É um processo de “mascar” as vogais e consoantes, não pelo atropelo, mas, sim, pela margem oposta a ele – a aclamaria. Soa intuitivo, como algo que vem das vísceras. Adjani dizia que era.

Lygia

Não se sabe o que Carolyna pode dizer dessa proposição, mas é na depuração do silêncio que ela galvaniza o texto de Maria Clara Mattos, que assina a direção de “Lygia” em duo com Bel Kutner. Quem viu “A Guerra Não Tem Rosto de Mulher” e o recente “A Inquilina”, percebe a mesma potência no modus operandi da intérprete de Lygia Clark, que nasceu nas Gerais, 23 de outubro de 1920, em Belo Horizonte.

Autora de um romance Elma Chips (traduzindo: não dá pra largar) chamado “O Céu Pode Esperar Mais Um Pouquinho” (finalista do Prêmio Açorianos de Literatura 2013), Maria Clara escava muitas camadas do legado de Lygia Clark. O aríete Carolyna a seu dispor, numa fricção com a experiência cênica de Kutner, permite que a autora avance em terrenos biográficos com firmeza. Mas seus pés nunca se afastam dos procedimentos criativos da personagem real pela qual transita. Não é uma biopic (épico biográfico). É um estudo de olhar, um pouco como fez “Camille Claudel” no cinema; um pouco como a película Caravaggio (1986), de Derek Jarman.

A tentação do biográfico, do fuxico da vida alheia, soa irrisória quando vemos a maneira com que Lygia moldava materiais, na aquarela do tempo, sob o diapasão do espaço. É o caso de “Docas”, “Paisagem”, “Cabeça de Cristo” e a chamada “Obra Mole”, além da safra “Estrutura de Caixas de Fósforo”. A fonte da dramaturgia é a triagem dos diários da artista, com o aval de sua família, somada a uma inegável reflexão sobre seus petardos estéticos.

No palco do Poeira, onde “Lygia” será encenado até 24 de abril, às terças e quartas, o legado de Clark (e seu modo de pensa-los e de se pensar a partir deles) rende frases dignas de anotar em caderninho. Entre fragmentos e inteirezas, solapam a gente expressões como “sou por engano, além da moldura; “a forma só existe em relação absoluta com o vazio”; e “O desespero de uma correspondência nunca posta no Correio”.
Ouvimos essas pérolas numa jira de Carolyna no cenário (sintético, mas, ao mesmo tempo, vistoso) do Studio Mameluca, numa iluminação dionisíaca, nada protocolar, de Samuel Betts. Escudada no figurino elegante de Andrea Marques, Carolyna leva a peça ao apogeu numa interação com a plateia, convidando pessoas a experimentar os projetos de Lygia. Em meio a esse ritual de troca, conhecemos melhor a Lygia da vida – e a Lygia da cena – em suas percepções, desilusões, amores, temores, dúvidas e (des)encantamentos. É uma galeria de sentimentos para uma estrela de galerias de arte.

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