Dorival Caymmi: Um Homem de Afetos rememora os bens da terra e do mar de um homem que foi repleto deles

Documentários sobre personalidades artísticas é uma instituição que raramente falha no cinema brasileiro. Nem é esquecido pelos cineastas, nem é algo que apresente riscos aparentes em sua composição, para além do desfile de elogios ininterruptos que tais grandes indivíduos gerem, e da qual raramente essas produções fogem. Esse ano já tivemos encontros com Lupicínio Rodrigues e com o Clube da Esquina inteiro, e vem aí encontros com Luís Fernando Verissimo e Ruth de Souza. Essa semana estreia Dorival Caymmi: Um Homem de Afetos, que contém os mais deliciosos encontros com um dos mais geniais músicos e compositores da História da MPB.

Pai de Nana, Dori e Danilo, que estão recheando o filme de carinhosos detalhes sobre sua relação com o pai e a dele com a família e a arte, Caymmi faria 110 anos semana que vem e a oportunidade de lançamento de Dorival Caymmi: Um Homem de Afetos é a mais propícia possível. Além dos filhos, figuras como Caetano Veloso e Gilberto Gil aprimoram o discurso do filme com colocações a respeito da obra do imortal autor de obras como ‘É Doce Morrer no Mar’, ‘Marina’, ‘O Que é que a Baiana Tem?’ e tantas outras. Figura ímpar dentro da música brasileira, daquelas que só geraram admiração e doçura, o título do filme é justificado a todo momento, enquanto observamos o afeto ser retribuído de volta no tanto que ele distribuiu.

A cineasta Daniela Broitman entrevistou seus filhos, seus herdeiros musicais e seus parceiros de trabalho. Além disso, percorreu materiais de arquivo importantes e vasculhou histórias como a do provável relacionamento com Carmen Miranda, do amor incondicional pela família, e da forma como influenciou tantos artistas e movimentos. Dorival Caymmi: Um Homem de Afetos não é uma obra cheia de camadas, para dentro da figura do homenageado e que também constrói uma linguagem cinematográfica potente como Verissimo; sua contribuição é a de rememorar os bens da terra e do mar de um homem que foi repleto deles.

A cineasta, premiada por Marcelo Yuka no Caminho das Setas, aqui observa embevecida o material que tem em mãos, e quer compartilhá-lo com o espectador. A partir do momento que faz isso, é como se a autora retirasse qualquer julgamento acerca do Homem e escolhesse o Artista para versar sobre. Como tem em mãos alguém tão profundo em sua simplicidade, Dorival Caymmi: Um Homem de Afetos nos convence facilmente a respeito de quem foi aquele homem, sem deixar de citar seus escorregões morais, criando uma contradição com seu lado familiar. Essa é a concessão que a obra faz ao mostrar Dorival como um homem comum inclusive em suas falhas.

É na voz de seus três filhos, no entanto, que o filme alça os voos interessantes que a obra poderia apresentar. Principalmente Nana, com seus conflitos com o pai, antes e depois da separação com seu marido, é uma personagem marcante tanto no filme quanto na forma como suas decisões mexeram com as certezas do pai. Dorival, com toda sua intelectualidade musical, era um homem de seu tempo, que tinha uma visão retrógrada a respeito do casamento, ainda que ele mesmo não se portasse como alguém convencional na sua própria relação. Nana é quem melhor revela lados do pai que uma produção ainda mais convencional poderia não destacar, assim deixando as curvas mais acentuadas de Dorival Caymmi: Um Homem de Afetos para si.

As imagens do mar da Bahia que ilustram as tantas canções do artista que compõe um universo que ele ajudou a moldar como uma das muitas caras do Brasil são a inspiração imagética que montam esse painel do homem comum por trás do gênio. E pelo menos um grande momento o espectador leva de Dorival Caymmi: Um Homem de Afetos, que é a fala de Caetano a respeito do que é, pra mim, a mais bela canção de Caymmi, ‘O Bem do Mar’. Ela exprime não apenas as significações e códigos de uma das melhores canções da nossa música, como o quanto Caymmi era gigantesco falando sobre coisas tão triviais, até elas deixarem de ser, ao serem tocadas por suas composições.