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“Traidor” reafirma a essencialidade e a inventividade de Gerald Thomas no teatro brasileiro

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Gerald Thomas opera como um espelho distorcido das convicções.

Maior experimento teatral das artes cênicas brasileiras em 2023, “O Traidor”, de Gerald Thomas, chega ao Rio, amparado pelo mar de elogios que colheu em São Paulo, sem se afogar na autoindulgência. A peça segue a se (e a nos) colocar dúvidas sobre o ofício da encenação e sobre o lugar histórico de colete salva-vidas da imaginação que foi imputado às peças desde os gregos. É nelas que a sociedade encontra – ou deveria encontrar – a verdade sobre seu tempo… sobre qualquer tempo. Mas Gerald não é um diretor que fala do que é vero, mas, sim, das “meias verdades”. Fora isso, seu empenho autoral de desmascarar empáfias e melindres da História se esforça para deslindar a culpa que um ator sente ao ser obrigado a ser o salvador da lucidez humana. Daí o instinto de “traição” que se faz presente já em seu título.

Nos tempos em que era colunista do Caderno B do “Jornal do Brasil”, de 2001 a 2003, Gerald Thomas escrevia de Nova York, seu lar há décadas. Nos EUA, ele foi assistir a um longa-metragem então badalado, “Storytelling” (“Histórias Proibidas”), uma dramédia pontuada a cinismo que rendeu indicação ao Prix Certain Regard do Festival de Cannes ao diretor Todd Solondz. Este, à época, era um dos pilares das narrativas indies dos anos 90. Solondz dizia: “Gosto da ideia das diferentes possibilidades que estrelas podem oferecer a um personagem. Abre todo o tipo de análises combinatórias que não existem no dia a dia, uma vez que, na vida real, só temos uma vida para viver”. Sua reflexão é análoga ao que Marco Nanini brada na peça “Traidor”. Aliás, um Nanini gigante, diga-se de passagem.

Escrito e dirigido por Gerald Thomas especialmente para Marco Nanini, peça traz tragédia e humor, com Nanini conversando consigo mesmo.
Foto: Carolina Tavares

O que Gerald Thomas (em ebulição) arranca do astro (e de um certo ente narrativo por ele encarnado) é uma espécie de palíndromo de si mesmo. É uma persona que, de trás pra frente, de frente pra trás, opera como um espelho distorcido das convicções que esse personagem outrora teve. Fala em “primavera”, mas esse sujeito cênico se encontra no outono de suas próprias crenças, um outono crepuscular. Vale lembrar de Solondz outra vez, pois de seus filmes mais significativos, com tramas que se olham, reiteram-se, combinam-se e se repelem, chama-se “Palindromes” (indicado ao Leão de Ouro de 2004).

Solondz explodiu com “Bem-vindo à Casa de Bonecas” (1995) e “Felicidade” (1998) quando Gerald já era “O” Gerald, tendo defenestrado a moral das artes cênicas em nosso país à força de “Carmem com Filtro” e “Eletra Com Creta”, lançados em 1986. Porém, com a humildade dos gigantes, Gerald via em Solondz um norte. Via nele a estrada dos tijolos amarelos para a iluminação de um mundo fascinado pela cultura digital, descrente das alianças analógicas de antes. Era uma inquietação similar a um aforismo de Nietzsche: “Temos a arte para não morrer de verdades”. Talvez por isso, “Traidor” seja um ensaio sobre a mentira.

Sua cenografia distópica, idealizada em SP por Fernando Passetti, lembra o quadro “O Grito”, de Munch. Num visual catastrofista, o espetáculo mais nutritivo da atual temporada carioca de teatro é vitaminado a uma ironia (e a um Nanini devastador). Seu enredo discute qual é o sentido de “trair” nestes tempos de fake News e delações premiadas. São tempos em que todo o saber depende de tutoriais de YouTube. São tempos de “chucrute no bumbum” (como de diz na peça), ou seja, de alívios passageiros, sem êxtase, sem a epifania da transcendência.

Não por acaso, o texto gargarejado por um ator sem papéis evoca a KGB, a Guerra Fria, espiões sem rosto. Evoca perigos reais e imediatos que, um dia, foram concretos, presenciais, ditongos, tritongos e pronominais. O perigo de hoje deixou de ser sinestésico (não tem volume, nem largura, nem altura) e passou a ser virtual.
Cheio de referências da trajetória do próprio Gerald em cena, “Traidor” assume como seu eixo central um ator chamado Nanini que, um dia, em 2005, fez uma peça seminal chamada “O Circo de Rins e Fígados”. “Traidor” é uma peça que de fato existiu, estreou em 2005 e virou um dos últimos monumentos da nossa dramaturgia. Era um thriller sobre a busca a um homem chamado João Paradeiro. Cerca de 19 anos após aquela experiência libertadora, sobraram àquele rapsodo apenas dúvidas e a percepção de que o Mal, no século (o atual), seja o coletivo das redes sociais que nos cancela e destila ódio em teclas (ou touch screen). Ela fala da Amazon e inventa(-lhe) corruptelas geográficas, como a Pernambook e a Maranhon. São especulações catastrofistas.

Cita-se Nietzsche, em “O Nascimento da Tragédia”, para justificar o alarmismo de Nanini. Nietzsche deu a dica ao dizer: “O idealista é incorrigível: se é expulso do seu céu, faz um ideal do seu inferno”. Logo, o Nanini da peça é um ativista platônico, um Fedro que come linguiças no banquete com as ideias… ideias sem congruência, sem vértice. Não por acaso, ele admite: “Sou viciado em drogas. Sou viciado em chorar. Sou viciado em perder. Sofro de Brasil”.

Gerald voltou cansado da mesmice, mas, nunca, nunquinha, de guerra. Sua força como dramaturgo e encenador é inesgotável, como se percebe numa peça que se finge de analgésico (pelas gargalhadas que arranca), mas, revela-se uma vacina contra as alienações nossas de cada dia.

Saiba mais sobre a peça!

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