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Diálogos com Ruth de Souza reverência à trajetória da lendária atriz

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Historicamente, artistas negros de qualquer gênero nem chegaram a ser apagados; a oportunidade inexistia mesmo, até para tentar um apagamento no futuro. O que foi apresentado por Léa Garcia, Milton Gonçalves, Antônio Pitanga, Chica Xavier e tantos outros foi pioneiro em todos os aspectos. Nesse lugar de reverberação que a sua própria figura fez à sua geração e às seguintes, Ruth de Souza era realçado de todas as formas. Diálogos com Ruth de Souza é o resultado de um mergulho pessoal e de nuances confeccionadas por uma dramatização emocional, que tem o único intuito de demarcar a passagem dessa artista tridimensional nos campos onde atuou; com delicadeza, mas sem reservas.

Juliana Vicente, a diretora de Diálogos com Ruth de Souza, é um nome que ainda vamos escutar muito mais do que já fazemos hoje. Em seu quarto longa metragem, Vicente vem do sucesso Racionais: Das Ruas de São Paulo pro Mundo, um raro documentário nacional de imenso sucesso na Netflix. O reflexo criado entre seus dois filmes mais recentes é a prova da versatilidade da autora, indo da secura radical de um soco no estômago à poesia de imagens que ousam investigar o passado e o presente. Muito jovem, sua autoralidade já tem uma demarcação em cena demonstrada pelo seu filme que estreia hoje na coragem de inserir esses componentes que geralmente tiram força de sua matéria-prima; não há perda aqui.

Diálogos com Ruth de Souza não trabalha com um acentuado número de cabeças falantes em cena. Só há uma cabeça, falante ou pensante, disposta a rememorar os melhores e piores momento de sua trajetória, olhar para o passado longínquo e perceber o que foi em vão – e o que lhe valeu o lugar na História. Com isso, o dispositivo escolhido está impresso no título e é a partir desse processo de conversas com Juliana que essa lenda se configura no nosso imaginário. Como sempre teve consciência da ausência de memória do país, tratou ela mesma de contribuir para a feitura de um documentário que nem sabia que um dia existiria. E ainda que não o tenha visto pronto, parte de sua vivência todo o material humano e historiográfico que o filme dispõe; não precisaria mesmo de mais que ela própria para repassar aos nossos olhos seu caminho.

O que Juliana apresenta para o complemento dos diálogos que dividiu com dona Ruth é uma espécie de poesia de imagens, uma criação particular a respeito dos relatos imemoriais com seu toque de sensibilidade. Estrelado por Dani Ornellas, as passagens narradas pela biografada nos carrega para um universo alternativo e onírico às palavras. São saídas elegantes em sua maioria, que transformam em material cênico o que é descrito de maneira concreta. O momento onde a encruzilhada se apresenta, no meio dos episódios envolvendo a novela ‘A Cabana do Pai Tomás’, são o ponto alto da criação da diretora. Ali, toda a sua capacidade de criação é colocada em perspectiva ao que foi narrado e o resultado é uma viagem metafórica e sensorial por meio da imaginação sensível da artista.

Aos poucos, o que é ouvido e o que é sentido passam a se costurar como algo de uma mesma textura, com a diretora convidando também o espectador a partilhar daquelas criações de maneira simbiótica. Acaba por promover em Diálogos com Ruth de Souza algo além de um documentário tradicional, mas uma conexão entre poesia, História e memória, que convertem em experiência sensorial rara. Daqueles momentos onde, sem modificar a linguagem cinematográfica, ou seja, sem criar um universo novo acerca do que é o seu ofício, Juliana situa sua obra em uma métrica inaugural sobre a historicidade de corpos pretos. Através dos relatos de dona Ruth, nos embrenhamos em um racismo além das estruturas tradicionais, porque se vale de muitos outros feitos discriminatórios. A proposta da diretora, nesse sentido, vai além da homenagem e da garantia do caráter perene de um documento. A essência da obra é para traduzir em planos uma reparação social a uma figura lendária.

Como diz Juliana, o rosto de dona Ruth tinha ao mesmo tempo um quê de altivez, melancolia mas sobretudo não lhe faltou bom humor nunca. Retratar essa mulher em toda a complexidade que lhe tornou porta-voz do tempo, figura combativa pela própria existência traduzida de forma doce por sua elegância, é a forma mais acertada de lhe fazer jus. Diálogos com Ruth de Souza é o acerto de contas de um país com uma de suas mais exemplares heroínas, e mesmo que Juliana sozinha não precise pedir desculpas e reverências a alguém que ela evidentemente devota, o registro sozinho é inconteste na apresentação de uma reparação.

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