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Testamento denuncia o vazio das discussões contemporâneas

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Denys Arcand não é qualquer diretor, cuja filmografia não tenha características políticas muito claras, nem chegou ao mercado na semana passada. O cineasta canadense completou 83 anos essa semana e sua nova obra, Testamento, estreia nos cinemas quase a título de comemoração. É justamente por conhecer o autor de obras determinantes, como O Declínio do Império Americano e As Invasões Bárbaras (pelo qual ganhou tudo que era possível, incluindo o Oscar de filme internacional), que sua nova comédia precisa ser avaliada para além do que aparenta ser, a princípio. E entender que, octogenário, sua relação com o mundo, com a política, com a arte, com as pessoas, está visivelmente cansada e entristecida.

Em resumo, ele e seu protagonista, mais uma vez vivido setenta anos que, no cúmulo dos acontecimentos, é confundindo com um autor do qual nem homônimo é, para uma premiação bastante debochada. É durante essa cena de Testamento, logo no disparo dos eventos, que o foco do filme parece apontar para um lado nada lisonjeiro do mundo de hoje, para pautas inclusivas e para vozes identitárias divergentes do status quo. O filme é incômodo justamente por ridicularizar e estereotipar, além de unificar discursos diferentes, sem qualquer jogo de cintura. Não é convincente enquanto sátira justamente por parecer tão antipático com o que está lidando, essa não é a melhor forma de demonstrar sua irritação.

Testamento, no entanto, sai desse lugar comum do que tenta vender como sendo a falta de espaço do diálogo com pessoas mais velhas para, aí sim, criticar com elegância o modus operandi vigente. Nesse momento, o filme sai da afetação engessada para uma provocação cheia de risco, e se equilibra no lugar que é mais a sua cara. Afinal, não se aponta o exagero da polarização política com desrespeito a qualquer lado. O filme denuncia o vazio de propósito das discussões contemporâneas, que parecem obedecer ao sabor de um vento que muda de direção a qualquer momento. É quando mostra o roubo dos lugares de fala, na bela cena da emoção de uma real personagem com real conhecimento e tradição, que o filme organiza suas ideias.

A partir daí, Arcand vira seu foco paralelo para as relações humanas, e aí Testamento cresce bastante. Porque as reminiscências do diretor fizeram com que o que tem de afetuoso não se perca na tradução de suas intenções. Quando o protagonista revela seus segredos, e uma coprotagonista parece cooptar o roteiro também para si, o filme ganha ares de agridoce acerto de contas com o que não conseguimos resolver, no caminho da existência. Dessa forma, as características que poderiam apontar a vozes reacionárias e antiquadas, mostram sua real preocupação: é com a solidão e a falta de comunicação e entendimento que o tempo se ressente. Sim, todos estão morrendo, sim, o tempo é curto… o que fazer, na reta final, se não as pazes com o humano?

Aparentemente, não há nada de novo em Testamento que o cinema de Arcand não tenha pincelado antes. Mas o atual estado das coisas chama a narrativa para uma guerra particular e interna a respeito das convenções dos discursos. É isso, e também o pêndulo que desliza por cima de tantos pescoços; não há muito o que fazer, mas nem tudo é ruim na chegada do novo. Lógico que livros destruídos nunca será algo viável, mas podemos observar o tanto de benefício que o novo pode trazer. Se a internet é um exemplo do que pode ser usado para o bem e para o mal, o filme acaba indo além e dizendo que todas as coisas podem estar nesse pé. A Rússia já exportou Tarkovski e hoje exporta armas de extermínio em massa – o que o futuro pode nos trazer para mudar um quadro desesperador?

A cena final, recortada no tempo e no espaço narrativo, parece reafirmar um período passado como sendo a solução dos problemas. A meu ver, Testamento nesse último suspiro deixa claro que tudo é cíclico, incluindo a razão. O que parece perfeitamente adequado hoje, não o será amanhã, e provavelmente no mesmo presente, será lido por outro grupo como algo criminoso. Não é exatamente sobre a defesa de lados ou um abraço no radicalismo como sendo a única opção viável para o entendimento. Mas de entender que, mesmo a discussão mais acalorada precisa de calma para ser solucionada. E que a vida, quer queiramos ou não, é uma eterna renovação, ainda que tal reflexão venha também através de passos que ora estão mais a frente, ora precisam sim recuar.

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