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Divertimento tem firmeza e o talento de uma verdadeira orquestra

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Quem perde com a ascensão das classes periféricas em lugares de elite? E qual o prejuízo social em observar tal crescimento, torcer por ele e contribuir para o mesmo? Tendo como palco um mundo de trinta anos atrás, nada mudou entre o tempo em que se passa Divertimento e hoje. Existe hoje um lugar cada vez maior para que a diversidade étnica e de gênero esteja representada nos espaços de ensino e nas instituições, mas estamos falando também de um mundo pré-cotas. Esse é uma dos inúmeros pontos levantados pela produção sem que haja a necessidade de afirmação verbal. O que vemos é, acima de tudo, um título que se arvora por uma seara que não é debatida na arte, o quanto dessa mesma arte é influenciada pela chegada de novos sujeitos, que nos colocam sob perspectivas históricas dissonantes dos lugares dominantes. 

A roteirista e diretora Marie-Castille Mention-Schaar tinha uma pedrada em mãos, e nem estou falando dos temas que deveria abordar – esse, um segundo desafio. O principal talvez fosse apoiar uma discussão tão atual, que começou há décadas atrás, em um gênero resumido a estereótipos da construção narrativa: a biografia. Divertimento é a história de duas irmãs gêmeas apaixonadas por música, o sonho de uma é tornar-se uma grande violoncelista, e o da outra é ainda mais desafiador – ser maestrina, quando passava longe de termos uma quantidade razoável de profissionais na área. O problema persiste, já que hoje o cargo é ocupado por menos de 10% de mulheres. Tudo se complexifica ainda mais se levarmos em conta a origem árabe das meninas, que vivem na mesma França arraigada de preconceitos que ainda persiste. 

Dentro desse ponto de vista, Mention-Schaar fez a coisa certa, que é centrar seu tempo narrativo no espaço de cerca de um ano, quando as meninas de apenas 17 anos ingressam em uma escola de música de elite, leia-se na parte abastada da cidade, com um colegiado imerso em xenofobia, racismo, machismo e classicismo. O filme tem um fluidez rara para um objeto dessa natureza, e consegue encantar mesmo a quem não tenha qualquer trato com o que está sendo debatido, e é preciso ressaltar como Divertimento é submerso em expressões da música clássica, e gasta o quanto for preciso de tempo no ritual de formar um maestro. É o talento da diretora que dribla o possível e o impossível para colocar em tela não apenas um retrato enxuto sobre algo ainda mais apurado do que vemos, como seduzir o espectador com algo tão específico. 

Diante de tal desafio cumprido, parece até mais fácil que ela se apresente com tanta propriedade para embarcar em uma jornada que pode gerar diversos gatilhos em espectadores. Isso porque Divertimento não poupa o espectador de momentos de constrangimento insuportável sofrido pelas irmãs, que sentem todo o tipo de discriminação de maneiras violentíssimas, através do sarcasmo tão cruel que um adolescente pode ser capaz de gerar em outro. São ataques verbais de profunda clareza, que servem para mostrar que as perguntas que abrem o texto serão sempre válidas. Porque infelizmente grande parte da sociedade se vê afrontada pela vitória de sujeitos periféricos, quando tais se mostram superiores em seus lugares de tradição. Aos poucos, o filme mostra que igualmente os adultos estão em cena para mostrar que foram eles que disseminaram esse horror, mostrando que suas vozes não diferem das dos jovens. 

Em determinado momento, um personagem diz: “privilégio é isso – você ter acesso facilitado ao que não precisa”. Em cima dessa frase que se apresenta logo no início da projeção, Divertimento discorre sobre esses dois lados; o grupo de jovens brancos bem nascidos que veem uma ruptura no sistema, e duas irmãs tratadas pelo Estado como incapazes na maior parte dos lugares onde chegam. É uma abordagem adulta e ao mesmo tempo branda de uma realidade que ainda mata no mundo todo, que no entanto não é mostrada como algo superficial. E é especial que a autora não tenha suplantado outra realidade desconcertante, a de que o mundo da música clássica não só é restrito e por isso tão competitivo, como é um berço de aprendizado diário e constante, onde a perfeição é pouco perto do exigido.

Em um elenco aplicado, que desempenha sua situação de coro com a firmeza e o talento de uma verdadeira orquestra, Divertimento tem em sua protagonista, Oulaya Amamra um trunfo de delicadeza. E encontra no olhar de dois veteranos, Niels Arestrup e Ariane Ascaride (ela, em participação verdadeiramente afetiva), a possibilidade de estruturar sua dramaticidade em lugar especial. Daquelas surpresas que aparecem de onde se menos espera, não há nada de extraordinário acontecendo em cena, mas o que é filmado tem tanta seriedade, um envolvimento sem par e uma vontade genuína de nos fazer atentos ao horror de sociedade que precisamos deixar de ser, que encontramos somente esperança ao final. 

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