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O Último Pub: Ken Loach faz retrato sobre os desvalidos do Reino Unido

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Não me envergonho em dizer que discordo fortemente das duas Palmas de Ouro dadas a Ken Loach por Ventos da Liberdade e por Eu, Daniel Blake. Antes que eu seja excomungado pela cinefilia, não, eu não quis dizer que o cineasta britânico não fosse merecedor de dois prêmios máximos em festivais quaisquer, seja ele Cannes, Veneza, Berlim ou outro. Esses filmes em particular, que acabaram por outorgar tais distinções ao mestre do cinema político-humanista, é que são menores diante de uma filmografia que inclui gemas como KesTerra e LiberdadeChovendo PedrasMeu Nome é Joe, entre outros. O octogenário realizador, que vinha de uma seleção de filmes menos incisivos e mais engessados em  narrativa e provocação, acordou na experiência passada, Você Não Estava Aqui. No seu auto-declarado último longa, essa estreia O Último Pub, Loach alcança um canto do cisne (caso o seja, de fato) com o melhor sabor possível.

O Último Pub

A proposta não é nova, os personagens já foram vistos antes, o olhar em sua direção é reconhecido pelo espectador que o acompanha, o que impressiona é o retorno de uma pungência que tinha perdido a constância. Loach parece, uma vez mais, ter o controle de um lugar que ele trata com domínio de linguagem. É um retrato sobre os desvalidos do Reino Unido, um lugar que encampa um dos maiores berços monárquicos do mundo, mas que o cineasta sempre ocupou de mostrar o lado menos abençoado, digamos. Isso sempre foi sinônimo de não ter complacência com seus possíveis defeitos, eventualmente até as falhas de caráter de uma parcela que não evoluiu enquanto sociedade. Aliás, em seu lugar de cronista, Loach usa suas lentes pra compor esse mosaico que permite o aparecimento de sujeitos opostos a truculência emocional, a falta de entendimento dos conceitos mais amplos de comunidade.

Sem empregar maniqueísmo explícito, O Último Pub é uma espécie de contínua relação agridoce entre o homem e seu entorno, no que isso pode apresentar-se de tão corriqueiro, ao mesmo tempo de tão político e essencial. É uma maneira singela de mostrar as bases da inserção comunitária, e clamar um lugar dentro das possibilidades a quem podemos auxiliar. Loach constrói isso sem forçar a mão no melodrama ou nas soluções fáceis de roteiro, no que o veterano Paul Laverty, seu parceiro habitual, consegue aprofundar suas intersecções sem provocar arroubos de conveniência. As colaborações da última década entre os amigos mostravam o cansaço de uma fórmula, e uma busca por soluções mágicas que diluíam qualquer empenho narrativo. O novo filme mostra que um trabalho de décadas em conjunto pode até arranhar a ideia de bom gosto, mas isso não apaga as capacidades reais dos envolvidos.

Algo que o diretor e seu roteiristas conseguem alcançar sem ferir a narrativa com fundações do cliché é a abordagem da imigração forçada pelos asilos e pela guerra, tão comum no cinema europeu nos últimos quinze anos. Grandes cineastas como os irmãos Dardenne sucumbiram na tarefa de conseguir traduzir dramaticamente as relações conflituosas entre a sociedade local diante da chegada do sujeito estrangeiro, expatriado de maneira direta ou não. Em O Último Pub, muitas das diretrizes do melodrama são acionadas, como a rejeição violenta ao que não se conhece, mas Loach traduz isso em sua obra de maneira neutra, sem encerrar seus personagens ou tema em mera demonstração de autorismo chapado. O que é visto, talvez até com alguma doçura, são os lados diferentes de uma realidade, que atende a chamados de ordens distintas. Esse olhar suavizado não deixa de assegurar a violência das relações, nem como algumas formas de pensar podem ter alcançado lugares tão arcaicos na xenofobia.

Tudo isso é muito traduzido não apenas pela interpretação de Dave Turner no centro do roteiro como TJ, mas principalmente como essa performance é marcada pelos pontos de ligação entre a forma como ele age ou reage às outras. O lugar e a forma onde seu corpo estabelece presença marcam momentos capitais de O Último Pub, como quando os frequentadores do bar começam a provocá-lo e ele continua enchendo copos de cerveja e servindo-os aos clientes. Ou em qualquer que seja o momento onde ele se dirija a Marra, sua pequena cadelinha que o salvou em momento de depressão profunda. Tal centralidade dada ao personagem é o provocador desse acertado tom que impregna toda a produção, de uma profunda empatia que tal sujeito libera na direção de quem tem um ponto. Sempre a postos para ouvir e tentar compreender seu interlocutor, o filme também mostra o grau de desprendimento precisa ter quem trabalha diretamente em lidar com outros seres humanos, seja você assistente social ou o atendente de um bar.

A fotografia de Robbie Ryan (colaborador de Yorgos Lanthimos, em A Favorita e Pobres Criaturas) reflete com exatidão o naturalismo que se persegue, e que a experiência humanista de Loach alcança com facilidade. Longe de procurar a crueza do documentário, O Último Pub é um material de ficção que se costura pelas bordas da vida real. Porque todos em cena são retratos fidedigno de um momento (ou de vários) onde a vida se mostra mais simples do que verdadeiramente é. Por trás das camadas que se desenham cada tipo em cena – e que o único senão do roteiro deixa escapar, em um escopo maior para a protagonista feminina – existe um contexto maior situando tempo, lugar e circunstância. Nesse sentido, o filme funcionaria, no futuro, como uma máquina temporal onde poderíamos vislumbrar um mundo do passado. E que, inclusive, gostaríamos que se mantivesse relacionado exclusivamente a ele.

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