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“A Barca” é um claustrofóbico estudo sobre traumas sociais cariocas

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Fiel à tese de que as relações sociais se baseiam numa equação recorrente (“alguém sempre quer alguma coisa de outrem”), o dramaturgo David Mamet é a primeira referência que vem à mente com a batalha entre Ivo (André Ramiro) e Douglas (Paulo Giannini) em “A Barca”. Alás, a peça é uma das mais precisas da atual temporada das artes cênicas carioca.

É surpreendentemente, sufocante a forma como o encenador Luiz Antônio Pilar condensa a fricção entre seus protagonistas – dois homens de passado em comum – num trajeto entre o Rio e Niterói. A cena ganha um contorno claustrofóbico (bem) vetorizado na iluminação de Elisa Tandeta. Diante de uma troca de farpas (e de um distante resquício de amizade), a primeira alusão à escrita mametiana que brota do texto do cineasta Alvaro Campos (diretor do arrebatador “Mundo Novo”) é “American Buffalo”, lançado por Mamet em 1975, e filmado em 1996 por Michael Corrente, com Dustin Hoffman, Dennis Franz e Sean Nelson.

Como na trama do bardo estadunidense, ouvimos em “A Barca” situações corriqueiras, entre palavrões, ruídos e muxoxos centrados numa disputa por miudezas. No cult de Mamet, havia uma guerra de egos por conta de uma moeda rara. No espetáculo brasileiro, peleja-se por uma casa que pode ser sucateada. Ivo tem a maior porcentagem dela e Douglas tem apenas 30%. O que conta, na briga que eles travam numa viagem sobre as águas de Niterói, são frases de rico tom trágico jogadas entre acusações e lembranças.  “Vem fazer nada junto comigo” é a mais leve entra as boas sacadas de Alvaro. “O teu só é muito pra mim” é um dos diálogos dignos de anotação desse estudo sobre desabafos.

 Ouve-se um “Não tenho advogado, mas tenho meus momentos” de um lado e um “Culpa cria uma solidariedade do c…lho!” do outro, consolidando a (doída) grafia de Alvaro na abordagem de mágoas passadas e convivências incompatíveis. Até a citação a guloseimas da culinária trash, como o chocolate Ki-Kakau (com K, como frisa Douglas) é motivo de arrancar cascas de feridas entre os personagens centrais.

Presos na recordação de imposturas sociais de uma metrópole como o Rio de Janeiro, eles se acusam e se acorrentam em dilemas históricos que justificam o termo “cidade partida” para a geografia onde cresceram. Além disso, o termo “o filho da empregada”, carregado de injustiça trabalhista, vem à tona várias vezes, de modo a rasgar qualquer nostalgia doce que eles tenham dos anos 80 e 90.  

Pilar usa o microcosmos esboçado por Alvaro como metonímia de uma cidade que se desenvolveu sob a geopolítica da intolerância. O acerto maior – na simbiose entre a direção e o texto – é a escavação de empatias (por vezes ínfimas) em arquétipos sociologicamente cimentados, como o suburbano que deu errado e o sujeito de classe média emergente. O debate que se cristaliza, no enfretamento deles, é do perdão, um perdão que tolere traumas de abandono e perdas com gosto de bolo de cenoura (uma das iguarias citadas).

André Ramiro e Paulo Giannini se digladiam nessa arena com sobriedade absoluta, arrancando sorrisos (nervosos) sazonais da plateia numa apropriação irônica (e sagaz) das falas de Alvaro, estruturada sob a supervisão de Eliane Alves Cruz, autora de “Água de Barrela”, hoje uma das mais potentes vozes da literatura nacional. A sulfurosa direção de musical Maíra Freitas ferve na temperatura certa o caldo sentimental que Ivo e Douglas entornam.

Percebe-se uma conexão (autoral) potente entre o exercício de Alvaro nos palcos e seu “Mundo Novo”, que passou pelos cinemas este ano sem o devido destaque. É um artista que pensa os abismos sentimentais da exclusão. 

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