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‘Hellboy e o Homem Torto’ aposta no assombro e desafia o moralismo

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A controversa presença de “Coringa: Delírio a Dois” na competição oficial de um festival como o de Veneza, na disputa pelo Leão de Ouro de 2024, prova que as narrativas audiovisuais baseadas em HQs seguem relevantes para a indústria do entretenimento cinematográfico. É, certamente, uma seara que segue sólida mesmo com recentes derrapadas (vide “Thor: Amor e Trovão” e “Aquaman 2: O Reino Perdido”). Aliás, a bilionária arrecadação de “Deadpool & Wolverine” reforça a relevância desse filão, que consegue se colocar à prova (como produto e como estética) com iguarias como “Hellboy e o Homem Torto”.

Hellboy

Recém-chegado ao circuito, essa adaptação de uma linha de historietas de 2008 se firma uma espécie de conto macabro que explora a mitologia das bruxas sem abrir mão dos componentes lúdicos dos enredos de super-herói. A atuação impecável de Jefferson White, no papel de um bruxo reformado (do Bem), o ar soturno de seu protagonista (Jack Kesy) e a direção de fotografia estilosa de Ivan Vatsov garantem potência (e uma delicada linha trágica) a uma tentativa de se restaurar uma franquia iniciada há 20 anos por Guillermo Del Toro. Sua genealogia passa pelo período de formação do artesão autoral mexicano, oscarizado por “A Forma da Água” (2017), mas vai além dela… bem além… com sua âncora fincada num mercado de papel e de balõezinhos.  

Lá pelo fim dos anos 1980, quando a filosofia nerd se empoderava, alimentada pelo pico da cultura do consumismo, os quadrinhos passaram por uma reciclagem formal em diferentes vias. Por um lado, investiram em sagas com múltiplos personagens (“Guerras Secretas”, “Crises nas Infinitas Terras”, “Atos de Vingança”), congregando públicos distintos. Por outra via, foram flertar com leitoras/es mais adultas/os aproximando-se de temáticas políticas (“Watchmen”) ou existencialistas (“Sandman”). Vendendo aos tubos, essa indústria foi solapada logo no início da década de 1990 por uma renovação mercadológica, que aconteceu quando os criadores de maior prestígio de suas fileiras resolveram abandonar usinas criativas gigantes – Marvel e DC – e mirar em novas editoras. As razões: liberdade criativa, proteção de direitos autorais, busca por um novo padrão simbólico de representação (de gêneros, de temas, do maniqueísmo).

Outrora todo-poderosa, a Image Comics começou ali, com best-sellers como “WildC.A.Ts.” e “Spawn”, apostando inclusive em novas abordagens anatômicas, sintonizadas com o culto ao corpo daqueles tempos anabolizados. Nessa mesma esteira mercadológica, uma empresa chamada Dark Horse, fundada em Milwaukie, no Oregon, em 1986, explodiu no gosto popular ao abrigar titãs do desenho (como Frank Miller e seu épico noir “Sin City”) e ao dar guarita a expoentes que andavam limitados com os rumos das companhias editorais já estabelecidas, como foi o caso de Mike Mignola. Seu nome hoje aparece no circuito brasileiro nos créditos de roteiro de “Hellboy e O Homem Torto”. Ele é o combustível que incendeia o rigor visual e o vigor dramatúrgica do longa.

Ilustrador de capas da “Tropa Alfa” e das páginas de “Vingador Fantasma”, MM despontou como uma promessa ao trabalhar com o escritor Jim Starlin na minissérie quadrinizada “Odisseia Cósmica” (1988). Na sequência, redefiniu o Batman sob padrões góticos na graphic novel “Gotham 1889” (1989), ambientada no século XIX, com a figura de Jack o Estripador como vilão. Seu desejo de aproximar a arte sequencial do terror não encontrava a ressonância adequada entre marvetes DCnautas, o que o levou a bater na porta da Dark Horse com Hellboy, em 1993. Recebeu sinal verde e emplacou um êxito imediato.

Sua estética de traços cubistas, mas de essência expressionista, emplacou um personagem posicionado nas fronteiras simbólicas do Mal. Hellboy é uma cria do Inferno, evocado ainda bebê por nazistas, que, ao ser salvo por um esquadrão das Forças Aramadas Aliadas, durante a II Guerra, cresce como um (anti-)herói, a defender o mundo de monstros e forças satânicas.

Já nos primeiros meses em que essa figura surgiu nas gibiterias dos EUA, ela virou um êxito comercial, sobretudo pela (inteligente) decisão de Mignola em focar em sagas fechadas e contos ilustrados, facilitando a vida de colecionadoras/es. No Brasil, a Mythos editora fez a alegria de nerdófilos ao traduzir as tramas do cartunista que cansou de ver sua cria ser mal aproveitada nas telas.

Em 2004, Del Toro filmou a saga inaugural de Hellboy com galhardia, apoiado no carisma de Ron Perlman mas teve poucas alegrias com sua continuação de 2008 (“O Exército Dourado”). Pior destino teve a versão de 2019 do Diabão, com David Harbour, que amargou absoluto desdém de cinéfilos.

Para a sorte do quadrinista, a produtora Millennium Media, interessada em conteúdo de tom horrorífico, farejou potencial remanescente no legado pop de Mignola, o que a levou a investir numa nova tentativa para o vigilante. A fim de buscar um diferencial que aproximasse o projeto de retomada de Hellboy de sua natureza mais “pesada” nos quadradinhos ilustrados, a Millennium convidou um cineasta com perfil hardcore para pilotar a direção de seu regresso ao écran: Brian Taylor. O diretor havia subvertido códigos dos longas de ação com “Adrenalina” (de 2006, e sua continuação, de 2009), filmando com Jason Statham. Subverteu de novo a lógica da pancadaria na série “Happy!”, de 2017.

Sua dinâmica de linguagem feroz levou a Marvel a apostar nele na direção de “Motoqueiro Fantasma: O Espírito de Vingança” (2011), numa tentativa de reinventar esse herói em chamas – e a persona de Nicolas Cage, seu intérprete. Não fez um blockbuster, mas desfiou estruturas algorítmicas das películas de seres superpoderosos. Pode se dizer o mesmo de “Hellboy: The Crooked Man”, que impressiona pelo requinte fotográfico de seu chiaroscuro.

Na tela, Hellboy (vivido por Kesy com entusiasmo) se une à agente Bobbie Jo Song (Adeline Rudolph) numa missão nas Montanhas Apalaches, em luta contra aracnídeos gigantes. Há, contudo, um perigo maior no local, que remonta à manifestação histórica de bruxas. Além de feiticeiras, a região é alvo de um ser conhecido como O Homem Torto, que, sob as ordens de Lúcifer, age como um coletor de almas. Conforme investiga os desígnios desse ente sinistro, com a ajuda do ex-bruxo Tom Ferrell (o já citado Jefferson White, em inspirada interpretação), Hellboy é obrigado a confrontar segredos de seu passado e buscar um novo direcionamento para sua relação com a Justiça. Mignola brilha no roteiro ao abrir um debate sobre o misticismo na cultura americana e questionar a lucidez de seu vingador. O saldo do filme é um espetáculo adulto sem medo de se lançar no assombro. 

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