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Othelo, o Grande aborda a construção cinematográfica do artista

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É feliz que poucos meses depois da estreia de Diálogos com Ruth de Souza, as salas de cinema estejam recebendo algo ainda mais potente como Othelo, o Grande, e que ambos apontem saídas para o documentário nacional mais simples, que é perder a sua principal – e mais nociva – característica: a narração alheia. Se existe uma forma (ou muitas) de encontrar sentido no que um artista foi, além de continuar sendo e reverberando, do que as próprias palavras, eu desconheço. É mais honesto, muito mais verdadeiro e infinitamente mais eficaz, inclusive do ponto de vista da construção cinematográfica. Breve, se juntará a eles Luiz Melodia: No Coração do Brasil, que carrega o mesmo traço, e fica uma importante mensagem a ser detacada: o artista negro, que sofre o racismo de uma maneira absolutamente ambígua em grande parte das vezes, deve ser quem mais precisa contar sua história sem interferências. 

Grande Otelo nasceu em 1915 em Minas Gerais, mas a cidade de Uberlândia sempre foi compacta demais para suas proporções, e desde criança ele escolheu seu destino. Isso é algo que Othelo, o Grande nos deixa a par muito rapidamente, a ideia de que um artista preto nascido há mais de 100 anos atrás conseguiu ir muito além do que estaria proporcionado a ele graças a si mesmo. E não apenas do seu incomensurável talento – isso obviamente sim – mas principalmente pela destreza com que o ator conduziu cada etapa de sua vida, em como estava na ponta de suas decisões sempre. E em como, ao olhar para esse homem hoje, o filme cria uma atmosfera que só é possível por essa comunhão entre o que ele bancou, e o que o filme decidiu manter, que é a idoneidade de sua voz. 

Com um material de arquivo rico, o trabalho de montagem de Willem Dias ao lado do diretor Lucas H. Rossi dos Santos mostra desde a cena 1 sua grandiosidade, e aos poucos deixa claro que Othelo, o Grande pode ser maior exatamente por contar com a liberdade da visão do artista. Há poucos sinais do que costumamos chamar de ‘chapa branca’ em tela; como é dada ao personagem as propriedades de manter sua visão, o que enxergamos é o modo honesto em como ele se percebia, e ao mundo à sua volta. Em como nunca tentou disfarçar seus erros, ou convicções que poderiam ser contraditórias com outras falas, porque tudo é construído com a lisura de quem perdeu e ganhou tantas vezes quanto foi possível, e que era agradecido por cada nova mão estendida. 

Vide a bifurcação onde é colocado através desses filmes Abdias do Nascimento. O criador do Teatro Experimental do Negro é citado de maneira eloquente tanto por Ruth quanto por Othelo em seus respectivos filmes, mas estão em situações de campos opostos. Ela elencou suas graves deficiências de caráter, enquanto ele tratou de colocá-lo em lugar respeitoso; talvez por não ter alcançado o tempo de Ruth, para reconfigurar trajetórias? Talvez, mas isso não impediu que ele julgasse a si mesmo, e se colocasse sem excessos de firulas ou empostações. Consciente dos eventos que protagonizou e da força que viu emergir com a sua presença e a de seus contemporâneos, o ator genial por trás das chanchadas já tinha provado sua inteligência emocional, não pretendia ser perfeito. 

O acervo a que o filme tem acesso é a prova de sua grandiosidade, desde os tempos da Atlântida até chegar ao brilhantismo de Rio Zona Norte, e o posterior clássico Macunaíma. Como foi de um pólo a outro sem arranhar suas qualidades e de como sua figura perdura exemplar, e Othelo, o Grande mostra que ia além do talento. Principalmente por reconhecer as fragilidades e investir nessa reflexão para tornar-se um artista melhor e um ser humano maior. Rossi, que dirigiu o impactante curta Ser Feliz no Vão, mostra-se signatário dos desejos de seu biografado, e cede a Otelo o direito de manter sua postura. Não é pouco, em tempos de tamanha arrogância, atrelar sua linguagem ao esforço de constituir ao outro um resgate de sua visão particular. 

O documentário sempre foi uma seara muito prolífica dentro do cinema brasileiro, e esse material biográfico congraça a maior parte das realizações. Recortes como o de Othelo, o Grande, ainda que sempre tenham existido, se tornam mais frequentes e ainda mais cuidadosos hoje, onde as ‘fake news’ emperram as relações. O lugar de imensidão de Otelo existe exatamente por todas as suas idiossincrasias que se uniram ao talento indiscutível; Santos percebe que o trabalho mais significativo que poderia ser atrelado a si era o de encontrar, na montagem, o corpo de seu ator. Ao moldar esse esquema, ele monta um painel sobre o Tempo, sobre a Arte e sobre as fragilidades de cada gênio. 

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