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Emilia Pérez, um musical para grandes plateias

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Em treze anos de atuação profissional como crítico de cinema, sinto que o gênero que sofre mais resistência do grande público é o musical. De certa forma, eu acho compreensível, pois trata-se do gênero que mais exige a suspensão de descrença do espectador — acostumado a encarar os filmes como uma reprodução da realidade, e não como uma peça de arte moderna, passível de ser artificial, performática e quebrar a quarta parede… cantando. Para essas pessoas, eu dedico este texto e indico Emilia Pérez como um musical capaz de conquistar grandes plateias.

O diretor Jacques Audiard utiliza muito bem o formato a serviço de seu cinema, que é justamente marcado pelo contrário: uma abordagem realista, tendo como foco questões sociais como marginalidade (O Profeta, 2009), imigração (Dheepan, 2015), trauma e resiliência (Ferrugem e Osso, 2013). O tema principal de Emilia Pérez é comum em todos esses filmes — identidade. Mas abordado de um jeito ainda mais frontal, contando a história de um traficante mexicano que decide mudar de país, de vida e de sexo. Assim, de certo modo, é coerente que o cineasta francês adote um gênero frontal como o musical. E é interessante como ele leva isso para os números do longa-metragem.

Todas as canções têm foco no texto, complementando bem o roteiro, de modo que algumas são menos musicais, mais declamadas, servindo bem ao tom da cena e ao humor e personalidade dos personagens. Já as sequências mais musicais de Emilia Pérez costumam fazer dos riffs da guitarra e das coreografias enfáticas, uma combinação através da tensão da trama. Nesse sentido, aliás, muitas palmas para Zoë Saldaña, que lidera as coreografias dando um banho de dança e interpretação.

A bem da verdade, todo o seu quarteto feminino, premiado no último Festival de Cannes, está de parabéns. Apesar de seu pouco de tela, Adriana Paz tem o mérito de sustentar suas cenas (maravilhosas) com Karla Sofía Gascón, que é uma força da natureza como Emilia Pérez e, pasme, como o traficante Manitas Del Monte. Selena Gomez também vem lembrar que eu preciso rever Spring Breakers (2012) e encarar, finalmente, “Only Murders in the Building” (2021—), pela ótima atriz que é. São quatro atuações muito fortes, que mantém a dignidade e coerência de suas personagens em todas as chaves em que o filme atua: o musical, o suspense, a comédia e o melodrama.

Se os musicais sofrem resistência, o termo melodrama é ignorantemente usado com uma conotação pejorativa, como sinônimo de drama aguado, meloso, de baixa qualidade. Jacques Audiard desconhece esse olhar limitado e insere um tom kitsch almodovariano na personalidade de Emilia Pérez, em suas roupas, sua casa, na comunicação de sua ONG, em sua relação com os filhos… enfim, ele afunda a obra em melodrama. E faz isso bem. Mesmo quando seus versos ou linhas de diálogos soam expositivos demais sobre o tema do filme e as contradições de sua protagonista, como “Não questione as transformações das pessoas”.
Emilia Pérez é o encontro improvável (e bem-vindo) do cinema realista de Jacques Audiard com a estética exagerada dos musicais e melodramas. E funciona porque eu nunca antes vira o diretor francês, um homem engajado politicamente, em forma tão engajada esteticamente. De modo que eu nem percebo, se for o caso, vícios de abordagem típicos de um homem branco europeu ao falar de crime na América Latina e sobre mulheres, sendo uma delas transsexual. A narrativa pulsante e emocionada de Emilia Pérez me hipnotizou do início ao fim.

Filme visto no Festival do Rio 2024

Rodrigo Torres
Rodrigo Torreshttps://rodrigotorrex.wixsite.com/rt-port
Formado em Letras para servir bem à comunicação e ao jornalismo. Crítico membro da Abraccine e filiado à Fipresci.

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