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Megalópolis é a saga de uma obsessão, contada a partir de uma narrativa livre de amarras de causalidade

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Num de seus filmes menos citados (embora seja dos mais precisos), chamado “Tucker: Um Homem e Seu Sonho” (1988), Francis Ford Coppola falou sobre um visionário (vivido por Jeff Bridges) que sacrificava a própria sanidade (e suas finanças) em prol da criação de um carro “ideal” para a América. As aspas no termo “ideal” ressaltam uma perspectiva de singularidade que perpassa alguns dos personagens que configuram a fauna de tipos idealizados pelo diretor a fim de retratar a sanha esquizofrênica de sua pátria por encontrar Eldorados. O clã Corleone da trilogia “O Poderoso Chefão” (1972-1990), por exemplo, não encontrou o Éden ao chegar aos Estados Unidos, na fuga da Itália, mas fizeram o possível para forjar “a terra dos sonhos” à custa de sangue derramado. O coronel Kurtz (Marlon Brando) de “Apocalypse Now” rachou-se ao meio quando percebeu que a ideia geopolítica cartesiana de “civilização” não existia na Ásia que invadiu, descobrindo que a barbárie era dele (como invasor) e não do povo invadido. Ou seja, enlouqueceu ao perceber que o verbete “ideal” não se encaixa em guerras. Agora, aos 85 anos, Coppola tenta estudar essa palavrinha que lhe é recorrente numa mistura de épico e sci-fi escalada para encerrar a 48ª Mostra de São Paulo: Megalópolis. Como em muitas de suas melhores narrativas, é a história de alguém tentando forjar algo, o que, no caso, parece ser a cidade perfeita. No fundo, o que ele quer é moldar o futuro. Seu protagonista é um arquiteto que anseia moldar o Amanhã. O problema é fazer isso sem aparar as arestas do Presente. 

Megalópolis

Lançado no Brasil graças ao empenho da O2 Play, que trouxe o realizador ao Brasil, onde ele recebe o troféu honorário Leon Cakoff da Mostra, Megalópolis é a saga de uma obsessão, contada a partir de uma narrativa livre de amarras de causalidade (as regras de causa e efeito comuns aos roteiros formatados de Hollywood) e que, por essa liberdade plena, ver por outra, torna-se um trem desgovernado. É um exercício autoral de risco absoluto, mas que beira a extravagância, resvalando no excesso e até na caricatura. Apesar do aparente desgoverno, sua dimensão poética é inegável, e irresistível, como foi “A Idade d Terra” (1980), de Glauber Rocha. A belíssima trilha sonora composta pelo argentino Osvaldo Golijov é um dos raros pontos em que o filme não gera dissonância de opiniões, assim como a atuação de Giancarlo Esposito no papel do prefeito de uma Nova York apresentada como Nova Roma.

Nos EUA, os estúdios da Meca do cinemão não se mobilizaram para dar apoio a Coppola em seu projeto quase faraônico. Megalópolis foi orçado em cerca de US$ 120 milhões e bancados do seu próprio bolso, com o dinheiro de suas vinícolas. Apoiado no engajamento de um elenco estelar, que tem Adam Driver no papel central, ele saiu em campo ciente de que experiências audiovisuais como essa não se pagam pelas tabelas de bilheteria convencionais, mas dão lucro ao longo dos anos, numa cauda longa. Aliás, a cauda de Megalópolis começou a se mover em maio, no Festival de Cannes, onde fez sua estreia internacional, concorrendo à Palma de Ouro. Não ganhou um prêmio sequer, dividiu opiniões, mas conseguiu seus primeiros distribuidores estrangeiros e assim foi ganhar mundo. Certamente, saiu da Croisette para levar os “homens difíceis” (jargão cinematográfico para personagens alquebrados) de Coppola planeta adentro em cenas de estatelar as retinas. 

Numa sequência inquietante, o arquiteto supracitado, Cesar Catilina (papel de Driver), caminha sobre o teto de uma construção nababesca e observa os céus de sua cidade até que, prestes a cair, ele consegue parar o tempo com uma palavra de ordem, estalando o dedo para que tudo volte a funcionar. Ganhador de um Prêmio Nobel, Cesar costuma ser definido como cientista após ter inventado uma substância, o Megalon, capaz de paralisar o fluxo temporal. Seu sonho é construir um mundo utópico. Como Tucker, ele é capaz de tudo nesse ímpeto de ser um Nabucodonosor, monarca que criou os Jardins Suspensos da Babilônia. O desafio é dar conta de gerar uma das maravilhas do mundo numa metrópole cerceada por uma política mais castradora que a dos babilônicos de outrora: o capitalismo. 

Para representar o garrote do capital, Coppola apela para uma metáfora da História e faz uma analogia entre os EUA de hoje e a Roma dos Césares – daí o prenome de Caitlina. Como disse o cineasta em sua passagem por SP: “O meu país não sabe se quer ser uma república ou um império”. Essa comparação com o legado romano se dá desde os nomes dos personagens até diálogos em latim na narração feita por Laurence Fishburne. Sua forma de narrar abre espaço para reflexão filosófica acerca da ponte entre aquele mundo e uma tradição imperial que sucumbiu com a ascese de Cristo e a instauração das estruturas medievais.

O Cesar de Driver não chega a ser um Nero como o de Peter Ustinove em “Quo Vadis” (1951), mas é uma figura controvertida, com um histórico afetivo traiçoeiro. Ao alcançar fama, ele almeja criar uma NY perfeita, apesar de o alcaide do local, o prefeito Cícero (Esposito, numa brilhante atuação), discordar de seus atos. A peleja deles é narrada com muita experimentação e até com imagens documentais. Num dado momento da projeção de Cannes, uma pessoa subiu no palco e se dirigiu à tela. É um exercício do chamado “cinema ao vivo”. A pessoa simulava ser um entrevistador que se dirigia a Cesar, na tela, numa conversa tridimensional, como se fosse em tempo real.

Por vezes, Driver parece estar aquém de Cesar. Talvez um astro com mais intimidade com o universo de Francis Ford, como Matt Dillon (de “Rumble Fish”), pudesse se encaixar melhor nas exigências que aquele sujeito nababesco demanda. Há momentos, contudo, que Driver brilha, ofuscado apenas por Esposito. As contradições do que se vê são muitas e reside nelas parte do esplendor de um longa que recusa rótulos e renega as fórmulas da indústria (sobretudo a do entretenimento). Megalópolis é um “filme-pesquisa”, um engenho tão radical quanto os de Tucker. Surpreendentemente, vemos um cineasta (um dos maiores) e seu sonho na tela. E como sabemos, nem sempre a gente decifra os sonhos pelas camadas mais rasas. As camadas mais profundas se desvelam com o tempo. Tempo para Cesar é tudo. Para este Coppola solar também.    

Filmado entre em 2022 e 2023, nos estúdios Trilith, em Atlanta, na Geórgia (além de takes em outros espaços), Megalópolis atira para muitos lados, acertando na mosca em alguns, mas errando alguns alvos, numa imprecisão que não deve ser encarada como um deslize, mas, sim, uma tentativa ambiciosa de invenção.

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