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“Um Jardim para Tchekhov” é uma lavoura de risos nervosos e finas atuações

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No apogeu de sua fama como astro do cinema de ação, Liam Neeson, um fã de “Tio Vanya”, deu um depoimento no qual explicava o sentido do heroísmo à luz de Anton Tchekhov (1860-1904): “As palavras dele são o passaporte para a alma humana, e no âmbito do espírito, na radical conexão que suas peças promovem entre as contradições sociais e a harmonia individual, não há maniqueísmo; há um olhar que devassa rótulos”. À ocasião, 2011, o astro (hoje septuagenário) sonhava com uma montagem de “O Jardim das Cerejeiras”, mesmo texto que mobiliza a protagonista de “Um Jardim Para Tchekhov”, um presente que Pedro Brício dá ao teatro carioca pela riqueza dos diálogos e, sobretudo, pela confecção da cada personagem em cena.

"Um Jardim Para Tchekhov"

Porém, Liam não teve folga de Hollywood para encenar seu autor fetiche: “tão grande quanto Shakespeare, Tchekhov fez a modernidade se pavimentar no palco”, disse o ator. Por razões diferentes, principalmente a pindaíba, o mesmo impasse se dá com Alma Duran, uma figura que ganha viço, angústia e humanidade a cada um dos gestos que reforçam o lugar de Maria Padilha no Panteão das maiores atrizes deste país, de ontem, de hoje e de sempre. 

Encenar o dramaturgo que redefiniu os códigos de representação da fragilidade é sua meta, ou melhor, sua boia de salvação. Falta a ela, contudo, a lembrança de um importante aforismo do escritor eslavo: “Errar é humano: mais humano ainda é atribuir o erro aos outros”.

À luz da interpretação coruscante de Maria Padilha é o eixo central de “Um Jardim Para Tchekhov”, mas a maneira como Georgette Fadel, sua encenadora, dirige as palavras de Brício abre canteiros imensos para que cada um dos satélites do cotidiano da Sra. Duran ofereça ao público seu show particular. Sabe “Apocalypse Now” (Palma de Ouro em Cannes de 1979), que é marcado por uma construção performática de Robert Duvall, depois uma de Dennis Hopper, depois uma de Marlon Brando…? Então… é por aí que vamos em “Um Jardim Para Tchekhov” sob o espectro do escriba de “A Gaivota”: cada integrante do elenco tem sua hora e sua vez. O criativo cenário de Pedro Levorin e da própria Georgette serve de liga (de identidade visual) a um microcosmo de um Rio de Janeiro falido.  

O bagulho fica doido quando Alma é obrigada a abandonar seu lar em Santa Teresa e partir para a Morada do Sol, em Botafogo. Vai para lá morar de favor com sua filha, a médica Isadora (Olivia Torres, com um quê de Shelley Duvall em suas pausas), e seu genro o delegado de polícia brucutu Otto (papel que Erom Cordeiro esculpe nas franjas do patético, meio ogro, meio frágil). O casamento dos dois está no ascensor para o cadafalso. Uma gota a mais de mágoa lhe entorna o caldo. Ele só quer saber do Flamengo e de brigar com o vizinho vascaíno. Ela só quer… Bom, nada aparente, pois parece que ela só quer um pouco de paz.    

Numa composição que evoca a Norma Desmond de Gloria Swanson em “Crepúsculo dos Deuses” (1950), na persona de diva caída, Alma causa conflito no lar de seus anfitriões com seu excesso de malas e com seu jeitão espalhafatoso, além dos cigarrinhos que insiste em acender quando pode. “Meu relógio é anticapitalista. Trabalho num tempo mítico”, diz. 

Logo que se instala, ela passa a dar aulas de interpretação para a motorista de Uber e aprendiz de mágica Lalá (Iohanna Carvalho, em atuação sempre delicada, o que traz harmonia à atmosfera torta na qual chega). A jovem nunca viu “As Três Irmãs” ou peças tchekhovianas afins serem montadas, mas viu as novelas em que sua professora brilhou.  Lalá testemunha, de aula em aula, a ruína do lar que lhe serve de escola, iluminado de modo dionisíaco por Maneco Quinderé, sempre em contrastes, em antíteses. Nada mais justo para um terreno minado. Aliás, mesmo tom de contraste (ora a elegância, ora o despojamento) se nota no figurino (assinado por Carol Lobato). 

Além disso, um quinto elemento, de tons fantásticos, há de abrir uma instância lúdica naquele território bélico: a aparição de Tchekhov em pessoa, composto por Leonardo Medeiros com um bom humor contagiante. Alma a princípio duvida de que um ás da escrita do século XIX esteja em Botafogo, em 2024. A gente duvida também, principalmente quando ele pede dinheiro a ela. É inegável, contudo, que aquele homem falante de Russo sabe muito do próprio Tchekhov, a se destacar sua crença de que suas peças eram comédias. “Em toda comédia existe tristeza”, diz. 

Essa parece ser a linha mestra da dramaturgia (antitética) de Brício: explorar as coisas tristes e os fatos alegres que brotam de um mesmo chão. O dramaturgo e diretor teatral apostou numa peça de trama complexa, que se estende por afluentes distintos. “Um Jardim Para Tchekhov” tem a luta de Alma atrás dos tostões para produzir sua peça. Tem a educação afetiva dela com Tchekhov. Tem o processo de imersão dele na brasilidade. Tem os estudos de Lalá. E tem o despedaçar do amor de Isadora por Otto. A efemeridade e a impermanência são assuntos centrais de cada debate, de modo a traduzir o quanto a vida é fugaz, ao contrário do que a eternidade da palavra escrita nos faz crer. Tudo é finito, menos o teatro que, milenar, dá respostas para uma fauna de gente (que como a gente) nem sempre percebe que um abraço é um abrigo. 

Georgette sabe costurar essas linhas sempre pelo nó do riso, mesmo o mais nervoso, e arranca atuações viscerais de um elenco em estado de graça. É um texto divertido do início ao fim. Fora que ver Maria Padilha em cena recicla qualquer certeza que a gente possa ter sobre a arte de atuar.  

Serviço: de 25 de setembro até 27 de outubro de 2024 / Local: Teatro III do CCBB RJ (Rua Primeiro de Março, 66) / Ingressos na bilheteria do CCBB ou no site bb.com.br/cultura/ CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA: 14 anos

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