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“Alaska” e o CEP da dor é frio

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Não há infalibilidade na lógica da complementaridade defendida pelo poeta Lindolf Bell (1938-1998) ao defender: “Sempre há duas solidões que se aguardam. Por isso quero estar junto como raiz e tronco”. Por vezes, solidões justapostas não se amalgamam, só expõem vísceras, como se vê na peça “Alaska”. Não se faz feijão com arroz na simbiose entre Rosannah e Henry, seus protagonistas, nas frias quebradas do mundaréu de Deus (ou sem Deus) cartografado pela dramaturga Cindy Lou Johnson em “Brilliant Traces”, título original do texto, encenado pela primeira vez em 1989. A dupla carrega tanto vazio dentro de suas almas que elas não se fundam, apenas alargam um abismo existencial que é deles… e é de toda uma civilização em tempo de incomunicabilidade. Não parece à toa o emprego da linguagem não verbal (a expressão corporal) na encenação proposta por Rodrigo Pandolfo. 

É ele quem interpreta (com potência implosiva) o cozinheiro Henry, um pobre diabo que se escondeu no estado menos povoado dos EUA, com apenas 733 mil pessoas numa área de 1.723.000 km². Seu lar é um velho celeiro que foi convertido em uma casa escassamente mobiliada na parte mais remota do nevado perímetro estadunidense situado ao noroeste do Canadá. O que falta à casa em mobília é compensado pelo caos interno de seu morador, num inferno pessoal de medidas agigantadas. Henry Harry aprendeu a viver no isolamento, numa bolha em meio à borrasca. O silêncio virou seu amigo de fé, irmão camarada. Ruídos em sua rotina: só o assobio do vento e o arrastar de correntes de seus fantasmas internos. Essa tal bonança, provisória, que ergueu para si é desarticulada com a chegada de Rosannah Deluce, papel que Louise D’Tuani desempenha com profícuo domínio das palavras, numa destreza gestual notável. 

“Alaska” se pauta de forma franciscana em extrair o máximo do mínimo, a cenografia de Miguel Pinto Guimarães acolhe essas duas pessoas numa estrutura que lembra uma ossada de baleia: poucos elementos expõem um colosso de vida que se escasseou e extinguiu-se. No palco há um chão coberto de neve, um fogão, uma escada e um baú. É neste lugar fumacento, quase onírico, que Henry e Rosannah acessam memórias, lembranças e também confusões sobre os motivos pelos quais foram traumatizados. O design de uma luz alva proposto por Wagner Antonio torna tudo ainda mais oco ali. A translucidez da iluminação reforça a opacidade daqueles espíritos sem bússola.   

Uma perda gravíssima confinou o chef Henry lá, limitando sua dieta sopas quentes que ele oferece à figura desesperada que base à sua porta. Rosannah aparece do nada, vestida de noiva. Dirigiu por duas semanas até chegar ali, na fadiga do volante. Busca um recanto para os músculos tesos. No fundo, o que caça mesmo é amparo. Regurgita algumas palavras, na tentativa de acalmar suas angústias, mas não consegue muito desenhar sua própria identidade pela fala. Ninguém ali consegue. Não por acaso, no finíssimo ensejo de direção de movimento de Lavinia Bizzotto, um par de performers, Alexandre Maïa e Tayson Pio, entram em cena para ilustrar, pela fricção, pelo balé, recordações que não conseguem ser dimensionadas na saliva. 

Confinados num lugar capaz de transfigurar lonjuras em proximidades, achatando a geografia na brancura de flocos de gelo, Rosannah e Henry expõem o arame farpado que arrastam de suas vivências pregressas. O problema é que farpas não forjam tranças. A crua beleza do que escreve Cindy Lou Johnson (em tradução de Luiza Vilela) é retratar o impasse estrutural da dor que inviabiliza anestesias e analgésicos. Mortos em vida, Rosannah e Henry percebem que um abraço pode ser um abrigo. Só que a arte de abraçar exige entrega, um substantivo que não tem mais espaço em seus vocabulários. As doações todas já foram feitas, só que em via de mão única. Dessa aspereza, brota no Poeira uma poesia indigesta, mas encenada com lindeza.

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