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Gladiador II investe numa reflexão política sem abrir mão da ação

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Tratado cinematográfico sobre a corrupção, Gladiador II tem uma geometria suntuosa, e em vários vértices. Suntuosidade nem sempre é sinônimo de excelência nas telas, podendo resvalar na cafonice (como Alexandre, de Oliver Stone). Nesta viagem ao Império Romano, contudo, o que existe de suntuoso não só ostenta virtuosismo técnico como se conjuga com um projeto estético meticuloso, capaz de equilibrar espetáculo (na mais alta voltagem hollywoodiana) com reflexão política de matriz sociológica. Habemus um Ridley Scott dos melhores, quase no diapasão de “Chuva Negra” (1989), seu filme mais contundente, e menos festejado. Dele, graças a “Alien, O 8° Passageiro” (1979) e “Blade Runner” (1982), sempre se espera eficácia, mas nem sempre poesia. Na sequência de Gladiador (Oscar de Melhor Filme em 2001), temos esses dois aspectos unidos, e azeitados. Não se trata de uma legacy sequel caça-níqueis (como, por exemplo, o quarto “Um Tira da Pesada”, desnecessário até a medula) ou de uma continuação que nega e moraliza o longa-metragem anterior (tipo o vergonhoso “Coringa: Delírio a Dois”). O que se vê na saga de Lucius (Paul Mescal, cheio de garbo, som e fúria em cena) é uma narrativa que honra o longa original e pensa os meandros do Poder com todo o alarmismo que estes tempos de eleição de Trump para a Casa Branca despertam.

Na virada do século, Gladiador foi um épico revolucionário para a engenharia dos efeitos visuais do audiovisual, que acabavam de tomar um sacode formal de Matrix (1999), sci-fi que impôs uma renovação tecnológica no CGI (Computer-Generated Imagery). O diretor, Ridley Scott, trouxe uma Roma digital e bolou um tigre virtual (com pleno realismo) para brigar com seu herói, Maximus (um Russell Crowe em estado de graça). A relevância do longa-metragem, contudo, foi além da ousadia no âmbito do hardware industrial do cinema. 

Gladiador II

À época de sua estreia nada se falava do filão sword-and-sandal, também chamado de peplum, subgênero da aventura (e do épico) explorado sobretudo na Itália, abordando as vicissitudes morais greco-romanas, com foco em seus combatentes e deuses. O ator Steve Reeves (1926-2000) foi o muso dessa linhagem, que rendeu joias como “Rômulo & Remo” (1961) e “Maciste no Inferno” (1962). Nos EUA, “Spartacus” (1960), de Stanley Kubrick (1928-1999), baseado no romance de Howard Fast (1914-2003), virou o cânone dessa linha de longas centrados em guerreiros romanos ou divindades gregas. Foi Ridley quem trouxe essa representação da História (há muito desgastada) de volta, graças à cruzada justiceira de Maximus.

Elementos dela, em imagens de arquivo (ora animadas, ora reproduzidas com filtros de cor), são resgatadas em Gladiador II. Aliás, estão lá não só para justificar o título e o retorno de personagens como a imperatriz Lucilla (Connie Nielsen) e o senador Gracchus (Derek Jacobi), mas para afirmar uma linha temporal que permite ao realizador uma análise do zeitgeist do mundo que recria. Em Gladiador II, Roma não é mero cenário, ela é “A” protagonista do fino roteiro de David Scarpa, que segue uma linha geopolítica mais próxima de “Quo Vadis” (1951), um clássico celebrizado pelo Nero flamboyant de Peter Ustinov (1921-2004). Ridley conversa com esse marco da telona e com uma dramaturgia mais pop, depurada pela televisão (e streaming), com “Roma” e “Game of Thrones”, ambos da (ex)HBO (hoje MAX). Ou seja, o cineasta dialoga com a tradição e com a contemporaneidade. 

Tal qual se via no Gladiador de 24 anos atrás, agora, temos uma vingança em campo. Ela é cultivada por Lucius, papel que amplia (e muito) as destrezas demonstradas por Mescal em “Aftersun” (2022). Sua mulher foi morta em batalha pelas tropas do general Acacius (Pedro Pascal, em firme interpretação, porém menos aproveitado do que deveria). É contra tal senhor da guerra que o rapaz (de DNA nobre) concentra sua ira e seu saber, citando poetas (Virgilio), regando o tímpano da plateia com frases dignas de anotação, como “A boa poesia viaja longe”. É dele o diálogo que serve de bússola à trama: “Roma infecta o que toca”. O principal sintoma dessa infecção é Macrinus, figura maquiavélica que pode (e merece) dar um terceiro Oscar a Denzel Washington. 

Ele corresponde, no ethos da Idade Antiga, ao que Don King (empresário de boxe, famoso por armar as pelejas de Mike Tyson) representou para o século XX, ou seja, é um promoter de lutas sangrentas. No seu caso, o ringue é o Coliseu. Quando Lucius é capturado, Macrinus enxerga nele um gladiador nato capaz de saciar o apetite sádico dos imperadores gêmeos Caracalla e Tegula (encarnados com viço por Fred Hechinger e Rory McCann) por coágulos derramados. Capitalista profissa, o personagem de Denzel (em atuação colossal) sabe que tem ouro na mão, não só pela infalibilidade de seu novo combatente com espadas, mas pelo fato de ele ter como meta derrubar Acacius. Quem chegar nele e derrubá-lo, destrona Roma e muda a coroa de cabeça. Macrinus, como Trump, é um empresário que ronda a aristocracia, qual mosca varejeira, e ambiciona para si um papel de estadista. Para isso, alimenta seus apoiadores reais com a cultura do ódio, na certeza de que a violência entorpece. O que Ridley faz a partir desse ente do Mal é estruturar um estudo inquietante sobre estratégias de dominação numa era de crepúsculo anunciado para uma civilização que teve o planeta a seus pés – e o perdeu. 

A fotografia dionisíaca de John Mathieson assegura carnalidade e realismo ao mar de CGI em que o diretor mergulha de cabeça, apoiado numa direção de arte que sabe filtrar excessos, na raia da grandiloquência. Gladiador II traz, certamente, sequências regadas a litros de adrenalina, e que se acumulam na tela, mas vale destacar a batalha contra um rinoceronte. A tensão se estende também para situações que mais parecem uma partida de “War”. Da mesma forma como fez em seu subestimado Napoelão (2023), Ridley aborda a movimentação dos bastidores do governo pela ótica do suspense, deleitando-se na retórica de Macrinus, que, no Brasil, nas cópias dubladas, ganha o reforço de Garcia Júnior como a voz de Denzel em português. 

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