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Retrato de um Certo Oriente reafirma vocação de Marcelo Gomes em sua arte

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Marcelo Gomes é um cineasta de deslocamentos. Seu primeiro longa, Cinema, Aspirinas e Urubus, tratava dessa sensação de não-reconhecimento geográfico e emocional, de uma maneira que poucos filmes brasileiros conseguiram realizar posteriormente. Essa característica está impregnada na sua filmografia, e a estreia de Retrato de um Certo Oriente reafirma uma vocação que reverbera em sua arte. Nesse encontro com Milton Hatoum (autor considerado infilmável, mas que meia dúzia teve coragem de se apropriar), os códigos entre os artistas parecem criar um amálgama de sensações. O que deveria ser um canal para a comunicação de um deles, acaba se provando a tradução do olhar de ambos. 

Gomes se apropriou da base de Hatoum para criar um novo circuito e peregrinação narrativa, quando desarma o caleidoscópio que o escritor criou para um novo tipo de jornada, onde a viagem é ponto crucial de convergência de eventos. Efetivamente a maior parte da ação de Retrato de um Certo Oriente acontece em períodos marítimos, onde pequenos e longos percursos são traduzidos para a relação entre três ativos. Em cena, um casal de irmãos libaneses escapa de conflitos armados locais para tentar de novo no Brasil. Durante a viagem, eles esbarram com um muçulmano, que será alvo da paixão dela e do ciúme doentio dele. Tudo isso (e seus constantes desdobramentos) é desenvolvido ao longo de alguns caminhos aquáticos, seja atravessando oceanos ou rios. 

A sensibilidade do diretor é responsável por ler de maneira tão cuidadosa o que acontece entre os personagens, que vivem em constante conflito – mesmo quando não parece existir algum. Está no ritmo contemplativo no qual viagens de navio (ou barco) impõem aos seus tripulantes, essa mesma energia faiscante é absorvida pelas imagens em um preto e branco seco, sem fissuras por suas luzes. Ao invés disso, Gomes privilegia em Retrato de um Certo Oriente uma forma discreta de enfatizar suas cenas, quase como testemunha de prazeres e arrebatamentos. Está na maneira em como ele se mantém fiel ao que é caro ao escritor, e em como ele descobre a sua própria assinatura dentro de um trabalho concebido por outrem. 

O que existe no labor de Gomes é algo que já vem da prosa de Hatoum, que é o prazer do detalhamento do plano. Embora tratar-se de um escritor, essa foi a tradução que seus diferentes intérpretes conceberam para ele, ao condicionar à imagem a maior aproximação possível de suas texturas, próximas ao tato. Isso cria uma associação livre em Retrato de um Certo Oriente, deslocando o campo filmado de uma distância possível até a aproximação mais radical. É um jogo nada fácil de realizar, porque a princípio são decisões conflitantes, que poderiam representar duas leituras esparsas. O resultado do projeto, no entanto, é esse eterno estranhamento entre o que é tátil e próximo, do que o filme trata como proibido, quase sagrado. 

Apesar de ter sua atmosfera muito concentrada em três personagens estrangeiros, a história da imigração no Brasil é um percurso que poucos filmes tratam, e que a obra de Hatoum já lidou pelo menos uma outra vez, com Lavoura Arcaica. Aqui, temos o encontro de três mecânicas diferentes na conexão com a cultura mais profunda do Brasil, onde a formação de uma miscigenação acontece mais a partir do encontro entre realidades tão díspares convergem. O clímax de Retrato de um Certo Oriente mostra o legado dessa interconexão entre povos que originaram o país, o estrangeiro e o indígena, com o perigo de morte sendo representado, enfim, por quem chegou. É uma zona de reconstrução da narrativa tradicional, que Gomes parece tratar também em Joaquim, aqui indo mais profundamente na questão. 

Porque não estamos exatamente diante de um lugar gerador de conflitos e mortes, mas em como é afetado o indivíduo em contato com o novo. Retrato de um Certo Oriente também aqui subverte o mito do ‘bom selvagem’, ao traduzir suas inquietações ao colonizador. É uma bela repaginação de episódios históricos onde a dor aos povos originários sempre foi o foco, e aqui finalmente observamos o lado contrário igualmente dolorido. Ainda que tal reforço seja feito através de outras ordens de complexidade (a intolerância religiosa e a xenofobia, por exemplo), é uma maneira corajosa e sensível de reposicionar o contato entre os que chegam em tons de violência, e os que abraçam o novo. 

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