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Queer: Luca Guadagnino faz poesia sobre o livro de William Burroughs

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Flores de cor lavanda caem sobre Lee, e talvez essa seja a única relação dele com a beleza em muito tempo. Vivendo de boemia em boemia, em processo contínuo de embriaguez ininterrupta, o protagonista de Queer deseja somente o que não pode ter. Não lhe faltam resquícios de um tempo que já se foi, mas o que mais lhe sobra atualmente é tempo; sobra-lhe justamente o provoca sua maior aflição. A contradição é sua parceira mais constante: Lee está em busca apenas de sexo rápido para aplacar uma solidão momentânea, mas é nessa ausência de busca profunda que surge Eugene. A esfinge que o novo filme de Luca Guadagnino não tem pressa ou interesse de desvendar, cabendo ao diretor e ao espectador sorver o mistério, que se adensa filme afora. 

Queer

Baseado na obra de William Burroughs lançada em 1985, Queer é mais uma obra que o autor escreveu e cuja moldura foi acertada através dos fluxos alucinógenos que lhe eram habituais. Aliás, o que Guadagnino faz é manter-se fiel ao seu espírito, com uma dicção que nos transporta para outro tempo emocional, onde as percepções e desejos homossexuais eram de outra ordem. A reprodução de seu protagonista, que habita um universo decadente que ele faz questão de degradar ainda mais, também é o resultado de uma pesquisa coletiva que ainda encontra ecos hoje. Sem a porção tradicional, o filme monta um desenho de personagem possível, em que o processo de autodestruição é real, embora não-assumido. 

Seus personagens vestem a roupa de andarilhos de um outro tempo, onde o que estava na ordem era a manutenção daqueles desejos, era ceder aos instintos de cada um ali. O que escapa à compreensão é entender cada um ali como alguém clamando por um socorro que não virá, mas que pode ter a solidão aplacada, ainda que momentaneamente. Como o título já diz, Queer (um dos muitos prenomes usados para adjetivar homens gays) não tenta carregar uma sofisticação geográfica com suas escapadas. Não se tratam de estereótipos vazios e sem contraste em tela, porque suas verdades são bem torneadas, ainda que suas participações não sejam grandes, todos em cena buscam uma verdade muito particular dos eventos e dos seres. 

No centro dessa ciranda de solitários em busca de qualquer afeto perdido, vemos esse homem, o mais desencantado de todos. Lee é uma provável sombra do que já foi, que vaga pela Cidade do México nos anos 1950 em busca de algum sentido que possa ser encontrado no fundo de uma garrafa ou de um beijo de despedida. Ao esbarrar com Eugene, sua vida colapsa sem qualquer motivo trocado, porém a fixação não acontece de parte a parte. A partir desse momento, qualquer vislumbre de um Daniel Craig que já tenhamos conhecido desaparece, e dá lugar a um ator inédito. Não apenas no que concerne o que já tínhamos de conhecimento de sua carreira, mas na comparação com seus pares, seu Lee é o retrato fidedigno de um recorte melancólico sobre o homossexual com mais de 50 anos, cuja juventude passou e a estabilidade emocional não foi encontrada. 

Certamente, o trabalho de Craig não pode ser medido com facilidade. O grau de complexidade que ele emprega em cena não tem a ver exatamente com uma entrega diferenciada, mas justamente em achar o mais simples e puro dentro de um trabalho observacional impressionante. Queer é um filme que consegue um grau de sofisticação fora do comum graças ao que conseguem juntos o esforço de seu protagonista em compor algo tão preciso e honesto, e do seu diretor em buscar sempre essa postura de desafio naturalista em seus trabalhos. Já passaram por suas mãos gênios como Tilda Swinton, Ralph Fiennes e Michael Stuhlbarg, e fenômenos como Timothée Chalamet, Zendaya e Taylor Russell; é emocionante, de verdade, acompanhar o toque, os olhos e a ansiedade prestes a explodir de Craig. 

Ainda que sua segunda parte revele um descompasso fora do comum na tentativa de conectar seus extremos, os dois lados de Queer são puro suco de Guadagnino. Existe uma predileção pela melancolia explícita, palpável em cena, que é rasgada por um arroubo artificial com excessos, e um momento equivocado de Lesley Manville como um todo. Mas acompanhar os descaminhos hesitantes de Lee, a companhia luxuosa de Drew Starkey e Jason Schwartzman (outro em momento maior da carreira) e a textura muito ampla para cuidar desse homem central é uma maneira muito desconcertante de apresentar seus temas. Não é todo dia que um Guadagnino novo estreia, muito menos um que tenha tanto e tão emocionante a dizer. 

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