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“Solidão de Caio F.” é a autopsia em corpo vivo do querer e suas contraindicações

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Exaspera-se melhor, sem anteparos ou arestas, o que se vive – e o que se sofre – em “Solidão de Caio F.” depois da absorção de uma frase que lhe (e nos) serve de farol: “Vocês chegaram depois que mataram a ilusão da gente”.  Em cena, onde havia sonho, ficou ressaca. Aliás, é difícil encontrar, seja onde for na cultura brasileira (quiçá só nos LPs de Moacyr Franco), narrativa tão ultrarromântica quanto o experimento existencialista escrito por Hilton Vasconcellos e dirigido por Alexandre Mello com base na prosa do gaúcho Caio Fernando Abreu (1948-1996). É ave rara em seu aprofundamento em parte pelo fato de o cinismo dos tempos de hoje insistir em fechar portas e janelas para o benquerer, um substantivo pontiagudo que causa tétano. Quem falou dele com excelência na História – do poeta Anacreonte ao cineasta David Lean, no filme “Brief Encounter” – lançou-se ao abismo da entrega, da renúncia, do abandono, três elementos empregados por Abreu em livros como “Morangos Mofados” (1982), no qual (no) alerta: “Não há nada a ser esperado. Nem desesperado”. O cartão de visitas do escritor: “Faço literatura, teatro, música, cinema e crítica. Mas de amor é o que eu gosto mais”.  

Hilton e Alexandre revisitam seu legado numa autopsia em corpo vivo de seus parágrafos, rasgando as veias por onde as impurezas inerentes ao gostar – principalmente a pior de todas, o abandono – trafegam, construindo uma narrativa claustrofóbica, de contágio. É aquele tipo de espetáculo do qual não se cura, daqueles que dão metástase.

"Solidão de Caio F.
Fotos Felipe O_Neill

Na decisão de encenar um estudo sobre vivências solitárias radicalizando a via do intimismo, Alexandre transformou um ateliê (que leva seu nome), em Laranjeiras, em palco, ornando-o de signos de polução amorosa. Tem Van Gogh na parede; tem cartaz do (seminal) “Querelle” (1982), canto de cisne do cineasta Rainer Werner Fassbinder (segundo o qual “as coisas que não funcionam são as que mais mantêm o nosso interesse”); e tem Maysa na vitrola, além de Maria Bethânia no ar. São engramas de querência(s), de incompletudes, moldados à luz de dois contos de Abreu: “Uma praiazinha de areia bem clara, ali, na beira do sanga” e “Dama da Noite”. A partir dele, transborda-se o fino da fossa.   

Em “Solidão de Caio F.”, um único homem se bifurca em dois personagens, que estão num mesmo ambiente, mas não se encontram, implodindo na atuação do já citado Hilton (sempre no diapasão da sobriedade, hábil) e na (esplendorosa) performance de Rick Yates. Formam um jogral no qual um é autor e o outro, personagem – e vice-versa. Regurgitam quereres que ficaram para trás (e, por isso mesmo, ficaram para sempre); falam de entorpecimentos na claustrofobia de estar só; arrotam os arranjos fugazes que engendram para ter prazer. Morrem(-se) e desmorrem(-se), levando a gente junto, na reflexão sobre a agonia de estarmos incompletos.
A iluminação, idealizada por Alexandre, besunta-se nos ornamentos da arena a ser redor (de cenografia detalhista, mas elegante), e aquece o clima, em tons cálidos, em sinestesia plena. O 

Além disso, o cenário (assinado por Pedro César Lima) blinda o público das dispersões de um mundo pleno de desatenções. Vestidos com os figurinos (precisos) de Ticiana Passos, os dois hemisférios de uma só alma, de um só Abreu, encarnados por Hilton e Yates, expõem vísceras de um viver que processo civilizatório algum dá conta, consolidando um gesto teatral ousado, que não cicatriza.  

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