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Anora: Sean Baker exerce com coragem onde o cinema indie é incapaz de adentrar

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Se existiu um vencedor recente da Palma de Ouro em Cannes que provocou polêmica desde seu anúncio, esse filme foi Anora. Nem mesmo o ‘freak show’ chamado Triângulo da Tristeza conseguiu tamanha controvérsia com seu resultado. Isso tudo por conta da vitória do filme de Sean Baker sobre a competição que estava representada por Mohammad Rasoulof com A Semente do Fruto Sagrado, recém estreado aqui que arrebatou o festival francês. Tendo visto os dois, considero injusta as colocações que foram feitas, que não perceberam que, mais uma vez, o cineasta estadunidense estava jogando os seus holofotes sobre os desvalidos da América, aqui calando profundamente sua intenções para além do material; Baker está sendo o mais simples possível, e isso não é demérito. 

É claro que o cineasta por trás de um neoclássico como Projeto Flórida tem sempre muito a dizer, e diz. Existe uma ganância e uma gana de acertar aqui que extrapola os limites do seu próprio continente, indo mostrar que essa sede concreta de vitória é mais do que uma característica norte-americana. Anora tanto está seguidamente estreitando comentários acerca de seu universo, quanto expandindo o mesmo em sua escala analítica. Indo além, a personagem-título aqui é uma representação que vai além da geografia pura e simples para (com ou sem ingenuidade?) ser também o corpo da América em todos os seus lados, vendendo-o e lucrando com sua própria imagem e o que tem a oferecer, para ao final encarar um outro tipo de exposição. 

Estaria Sean Baker, com isso, vitimizando seu país ao tentar metaforizá-lo como uma jovem em busca de um pouco mais do que poder? Por conhecer o histórico do diretor, não creio. Nem Anora, o filme, muito menos Anora, a personagem, são pintados com tintas menos que extravagantes, sem concessões ou tentativas de dramatizar em excesso suas contradições. Temos em cena uma dançarina de boate que não mede esforços para ir além na sua tentativa metódica de ganhar um pouco mais de dinheiro, de maneira sistemática. Nesse sentido, também não há vestígio de exploração do corpo feminino, se ele é absolutamente deserotizado no sentido mais explícito da expressão; se o corpo de Mikey Madison está nu, talvez em quantidade maior do que o pudico cinema estadunidense permite, não é por isso que ele seja fetichizado. 

O que está em questão aqui, acima de tudo, é o trabalho, é o exercício laboral do sexo, que é uma marca da filmografia de Baker. O ato sexual nos seus filmes, estando em cena de maneira frontal ou não, é a maneira com o qual se negocia e se estabelece dinâmicas de poder, dominação, influência ou escambo. Podemos até vislumbrar algo que se assemelhe ao amor, mas prazer não, isso é material de descarte aos seus protagonistas. Com essa elaboração, fica completo esse círculo de análise narrativa acerca não apenas de Anora, mas principalmente o passo além que o cineasta empenha aqui, ao transformar essa aparente comédia romântica em um espelhamento sensorial de um dos países mais poderosos do mundo, antes que ele perceba a face da queda. 

Se no campo das ideias Anora é um desdobramento cheio de camadas e curvas, no aspecto do gênero estamos diante de uma rara produção que equaliza suas intenções até o limite. Existe uma cena específica no filme que nasce clássica, que recupera o ‘vaudeville’ para cinema, pincelando toques das ‘comédias malucas’ de Ernst Lubitsch como forma de referendar historicamente a origem do seu detalhamento. Tal sequência dura pelo menos 20 minutos e se passa em uma sala de estar onde tudo acontece, nas raias da literalidade e de todo tipo de incorreção. Baker, que nunca foi um cineasta covarde, aqui exerce parâmetros de coragem que mesmo o cinema indie é incapaz de adentrar. Em toda sua extensão, o filme segue avançando com o que é dito até chegar no limite do suportável, e isso contorna um caos típico da comédia, arrancadas sinceras gargalhadas em quem aceitar tal mergulho. 

Isso tudo é conseguido graças aos níveis de excelência que seu diretor, roteirista e montador conecta entre suas funções. Na linha do risco, Anora é um novo capítulo em uma filmografia de invenção que não esgota seu arcabouço dramático. Ainda que indigência moral e social estejam nas frestas de suas narrativas, Baker sempre recarrega sua fé no ser humano através do rasgo de naturalismo que é a mola de suas questões. É exatamente por acreditar de maneira genuína nos personagens, nos seus causos e feitos que o autor consegue montar um trabalho onde o grau de dinâmica raramente sai do acelerador, sem demonstrar a intensa correria que aplaca grande parte dos roteiros de hoje, em qualquer área do audiovisual. Aqui, o ritmo é incessante, mas nunca é maior do que o coração pulsante de uma obra cuja peculiaridade é essa crença irremovível no próximo, diante de qualquer que seja o erro. 

O arremate desse precioso pedaço de caos é proporcionado por um elenco de sonho onde cada elemento tem seu valor. Capitaneado pela supracitada Madison, o que testemunhamos aqui é o nascimento de uma estrela da qual ainda sequer mensuramos o valor. Indo do humor mais rasgado à introspecção menos óbvia, a atriz veste uma personagem difícil de cores hipnotizantes, e sua química com o resto do grupo é o pilar de sustentação do todo. Desde seu encontro com Mark Eidelstein, deslumbrado em sua juventude infinita, até a chegada de Karren Karagulian com seu conceito de estrutura dramática que precisa ser alcançado, é um festival de encontros e momentos tão insanos quanto memoráveis. Ao largo dos eventos está o Igor vivido por Yura Borisov, de lapidação tão minuciosa que demoramos a descobrir o tamanho de seu significado. Nós e Ani, que não percebe que está do seu lado mais do que um pilar de sustentação, mas a verdadeira base de uma coluna que, em algum momento, vai cansar de envergar. 

Em suma, acertou Greta Gerwig na sua presidência de Cannes, mas talvez passem ainda uns bons pares de anos até que consigamos adentrar no espetáculo múltiplo que é Anora

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