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“Martinho, Coração de Rei – O Musical” leva Miguel Falabella à apoteose da invenção

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Lembra da sequência emblemática do sucesso de bilheteria (e potencial oscarizável) Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, na qual um jornalista da revista “Manchete” pede à família de Eunice Paiva (Fernanda Torres) que não sorria, antes de uma foto? Quem vive esse repórter é Alan Rocha. Ele anda emplacando uma participação luxuosa atrás da outra em nossas telonas (vide “Mussum, o Filmis”, “Praia Formosa”, “Um Lobo Entre Os Cisnes”) e vai dividir cenas com a diva Fernanda Montenegro no esperado “Vitória” (ainda inédito). Noutra latitude, o palco do Riachuelo, vitaminado por seu sucesso cinematográfico, ele abre o ano letivo do teatro carioca com uma apoteose profissional à frente de “Martinho, Coração de Rei”, um musical crocante que só, assinado por Miguel Falabella de Sousa Aguiar. Seu Martinho da Vila põe a plateia de pé, a aplaudir, cantar e dançar.

É bonito ver um ator construir legado, sobretudo do modo “devagar, devagarinho” (para fazer referência ao compositor e cantor que interpreta) como Alan vem fazendo, em escolhas que se beneficiam de suas múltiplas destrezas. Exemplo de determinação, dono de um talento capaz de se fazer notar mesmo na menor das brechas, ele se impõe como um vulcão em erupção no espetáculo que expande as potências criativas de Falabella para o terreno da pesquisa de linguagem.  

Popularíssimo (sem precisar ser populista), o Caco Antibes do Brasil costuma ser mais e melhor lembrado, em seu devir encenador, por suas proezas de entertainer, na habilidade de lotar as casas de maior capacidade de público de nossas artes cênicas, enchendo poltronas. O que se desenha, agora, em sua imersão na vida e na obra (que talvez sejam uma coisa só) de Martinho José Ferreira é um experimento de maior risco (e de fino resultado) narrativo. É um exercício que nasce epopeia histórica, vira biopic (à la “Rocketman”) e se abre a metalinguagens, com direito a intervenções do Além, com o espírito bastante zombeteiro de Noel Rosa (1910-1937).    

Ele flana pela cena qual um Yorick, o bobo de Shakespeare, que tudo sabe em seu humor de oráculo. Ouve-se um diálogo desse bardo da Vila Isabel, morto um ano antes de Martinho nascer, no qual se indaga “Isso é musical ou teatro experimental?”, chamando o próprio Falabella para dar explicações. Este não entra em cena, mas sua assinatura está nela. 

Dramaturgo, diretor e ator, São Miguel, egresso lá da Ilha do Governador, formou-se artista por meio da leitura dos versos de Emily Dickinson (1830-1886), poeta americana que escreveu “O mais sublime alvo do Tempo é a alma sem memória”. Na poesia dela, Falabella aprendeu a não bobear com o avanço das horas, dias e anos, tratando personagens numa ótica multifocal até quando é memorialista. Vai do amor ao bolso (vazio), passando por siricuticos existencialistas. Isso vale tanto para um painel de afetos feito “Como Encher Um Biquini Selvagem” (escrita por ele em 1992) quanto para o outonal retrato da decadência “Todo Mundo Sabe que Todo Mundo Sabe” (seu “O Jardim das Cerejeiras”, escrito com Maria Carmem Barbosa, em 1995). Sua escrita sabe abalroar o bem querer, o desejo de criação, a relação com a História, as genealogias geográficas. O veio a partir do qual ele cartografa os feitos do intérprete de hinos líricos como “Disritmia” passa por todos os afluentes listados acima, tendo Alan Rocha como um dos Martinhos. São quatro ao todo, com intérpretes diferentes. Cada um dá conta não exatamente de uma fase cronológica – como se faz de praxe -, mas, sim, de um estado de alma. Ou seja, são como quatro heterônimos, mas heterônimos xarás.  

Idealizado por Jô Santana, esculpido dramaturgicamente pela filósofa Helena Theodoro e alinhavado como expressão estética por Falabella, “Martinho, Coração de Rei – O Musical” começa com um introito sob a ancestralidade das populações de origem africana, em evocação dos griôs, os contadores de histórias. Alan abre os trabalhos (e, qual frisa a gíria, “chega chegando”) como um guardião da oralidade que torna perene os mitos fundadores da cultura da qual Martinho é porta-voz. A exuberante cenografia de Zezinho Santos e Turíbio Santos, somada aos figurinos dionisíacos de Cláudio Tovar, faz lembrar a Wakanda de Pantera Negra (2018) ou a Zamunda de Um Príncipe Em Nova York (1988) com pompa quase hollywoodiana. Como Falabella tem um pé em “West Side Story” e outro em Ken Russell (diretor de “Tommy” e “Os Demônios”), o que existe de Hollywood nele logo ganha uma brasilidade marota, no padrão Cajado Filho (artesão autoral das chanchadas, realizador de “E O Espetáculo Continua”, de 1958) e, sem largar de mão a austeridade mítica, abre-se para um Carnaval. 

Em “Martinho, Coração de Rei – O Musical”, vemos Martinho moço na Serra dos Pretos-Forros a firmar seus primeiros amores, arriscar as primeiras letras, graduar-se sargento nas Forças Armadas (numa espetada bonita do texto na ditadura militar), assumir a tarefa de gravar suas próprias composições (a contragosto) e brilhar na Sapucaí, em 1988, com o samba “Kizomba: A Festa da Raça”, que venceu o desfile assegurando o título de campeã à GRES Unidos da Vila Isabel. Há vários momentos de catarse coletiva e gargalhada, como o encontro do ainda sargento Martinho com Jamelão (1913-2008), o curió da Mangueira, vivido por… Alan Rocha… em mais uma polivalente interpretação.

Calçado na direção musical de Josimar Carneiro, o ator consegue modular a voz no timbre tonitruante do gogó por trás de “Matriz ou filial” (o hit maior do puxador da Estação Primeira) e se adequar ao cantar melífluo que tornou Martinho uma onipresença no tímpano nacional. É a primeira atuação possante deste 2025 em nossa cena teatral e, a partir dela, o Rio modula o que haverá de ocupar seus palcos a partir de uma passagem de Falabella a um outro degrau em sua fricção com a arte de Eurípedes. Ouve-se uma frase em “Coração de Rei” que traduz seu ímpeto: “Teatro é o mundo dentro do muno”. O mundo falabelliano é um universo.      

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