- Publicidade -

Misericórdia: Alain Guiraudie apresenta uma proposta sensorial sobre desejo

Publicado em:

Se fosse apenas por Um Estranho no Lago, Alain Guiraudie já deveria ter seu nome considerado entre os maiores do seu tempo, mas o cineasta francês (que não tinha começado a carreira no sucesso de 2011) continua criando uma filmografia que não se coloca como integrante do resto da filmografia de seu país na atualidade. Ao seu lado, talvez apenas Bruno Dumont se configure representante de uma cinematografia que extrai de um relevo aparentemente inusitado a matéria prima para um olhar que se configura, na verdade, como um recorte de um naturalismo muito particular. Nesse olhar menos posado e com possibilidades de transgressão onde Nelson Rodrigues se sentiria à vontade, observamos um microcosmos de sentimentos ambíguos entre pessoas possíveis. 

Misericórdia estreia essa semana com o carimbo de ter sido escolhido como o melhor filme da temporada pela ‘Bíblia do Cinema’ Cahiers du Cinema, e a única surpresa nessa escolha existe na aparente normalidade em que o roteiro se movimenta. O que acontece a partir do frugal falecimento de um padeiro de uma vila em região montanhosa francesa é um turbilhão de eventos que mostram as válvulas de escape que redimem os humanos através do desejo. Esse é o mote que atravessa todos os filmes de Guiraudie, na possibilidade adversa de expor nosso desejo independente do quão aceitável seria tal mergulho. Aqui, o desejo não é apenas uma forma de expiar novas possibilidades, em todos os sentidos, como também reflexo de uma culpa religiosa que não pretende mais represá-los. 

Os personagens de Guiraudie seguem uma lógica própria que não se descolam de uma realidade que o cinema insiste em mascarar. O que convencionou-se chamar de um processo naturalista no cinema não abarca todas as convenções possíveis de humanos onde seus impulsos não obedecem questões normativas. Misericórdia não está à mercê de sentimentos plausíveis em um mundo padronizado, mas não é isso que os transforma em situações tidas como anormais. O desejo é uma mola imperativa que não obedece o que se imagina previamente, e por isso tratamos de seus resultados como dissidentes. Ainda assim, estamos diante de um grupo de pessoas que sente igual, que erra igual, que deseja igual a qualquer outro, embora o que vemos não apareça óbvio assim. 

O magnetismo construído por Guiraudie em Misericórdia é conseguido desde a cena dos créditos de abertura, a partir do para-brisa de um carro que chega para ruir uma comunidade. É uma ambientação misteriosa, que passeia pela neblina no qual os personagens submergem no vale próximo, e uma reiteração do inesperado na maior parte do tempo. É um talento incomum para mapear o que pode ter de mais suspeito diante de uma realidade trivial, que é embalada pela representação de um apetite incessante, que o protagonista exala com sua chegada. É o tradicional retorno do filho pródigo, que não tinha volta ansiada, justamente pela representação de liberdade que traz junto a si, não apenas por não demolir qualquer ímpeto de qualquer ordem – o que fazer quando a repressão é refletida na aceitação irrestrita que não se consegue deter?

O resultado é imprevisível quase sempre, mediante ao cardápio de opções que o cinema oferece para narrativas tradicionais. Quando assentamos que Misericórdia não se presta a reproduzir qualquer tipo de convenção, o espectador fica mais aberto não exatamente a aceitar o que vê, mas para encarar com trivialidade tais caminhos. Que, no fundo, são a representação da verdade de cada um ali. A relação entre o protagonista Jéremie e uma das figuras da adolescência que voltou a interagir agora, Walter, é um daqueles momentos do cinema que valem a pena acompanhar, dada a tridimensionalidade que é adquirida ali. Tanto na representação narrativa quanto no que apresentam Félix Kysyl e David Ayala, cuja química pode ser cortada com uma faca de tão palpável, o filme ganha com sua conexão.

Com um circuito que ora parece mais aberto ao discurso menos óbvio, ora se cerca apenas de títulos pasteurizados dentro do seu escopo de provocação narrativa, a estreia de Misericórdia vem mais do que para aplacar um quadro qualitativo, mas também para mostrar que devemos ir além de títulos pré-fabricados. O cinema do qual Guiraudie se interessa é aquele que não tem medo do desafio de mostrar mais do que um padrão coletivo – estético ou conceitual. Dentro de uma caixa que se vende de maneira facilitada, no entanto, encontra-se uma proposta sensorial de compreender o desejo, não ceder ao julgamento fácil, e ainda nos fazer querer capturar também o nosso desejo, aquele mais indomável e despadronizado. 

Mais Notícias

Nossas Redes

2,459FansGostar
216SeguidoresSeguir
125InscritosInscrever
4.310 Seguidores
Seguir
- Publicidade -