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Nosferatu presta tributo à gênese do terror

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Monstros são sintomas estéticos de incerteza, na sociedade ocidental moderna, desde o tempo em que o avanço fabril das práticas laborais alargou as margens do desemprego, abrindo brechas para instabilidades financeiras nos planos econômicos, como se viu na Alemanha pós I Guerra que gerou “Nosferatu – Eine Symphonie des Grauens”, em 1922. A instabilidade que afogou o povo germânico daquela época, unificado há pouco, gerou a necessidade de distorção do real como tradução das dualidades e dos desmanches financeiros. Gerou ainda a exposição de diabos internos, antes lacrados (ou quase) nos porões do inconsciente. Estimulado pelo arquiteto, ocultista e produtor Albin Grau (1884-1971) a filmar uma história de vampiros, a fim de levar às telas ressacas das trincheiras, o diretor Friedrich Wilhelm Murnau (1888 – 1931) quis adaptar o romance “Drácula” (1897), do dublinense Abraham Bram Stoker (1847-1912), mas, infelizmente, não obteve os direitos do livro.

Nosferatu

Com o interdito, buscou uma saída formal e dramatúrgica. Mudou nomes de personagens, levou a trama para a cidade alemã de Wisborg (nome fictício dado à região de Wismar) e modificou o aspecto físico da criatura sedenta de sangue que protagonizava o texto de Bram. Deu a ele aspecto animal, próximo a de um roedor, dialogando com arquétipos antissemitas. Drácula continuou no mesmo posto de nobreza, ou seja, conde, mas passou a se chamar Orlok (um termo satânico). Aliás, o título do longa-metragem também evoca a Maldade, vindo de um termo romeno, Nesuferitu, que significa “ofensor”. Dessa operação nasceu um dos mais belos exercícios narrativos de toda a Era Muda da indústria cinematográfica, seminal para o projeto artístico expressionista e essencial para a consolidação do terror como gênero. É essa trilha histórica que serve de base à versão 2024 da saga de Orlok, proposta pelo nova-iorquino Robert Eggers não só como um tributo a Murnau, mas como reflexão sobre o zeitgeist que fez de um morto-vivo a metáfora da inadequação num mundo de exclusões.

Entre o clássico da década de 1920 e seu (colossal) remake, orçado em US$ 50 milhões, que chega nesta quinta às telas brasileiras, houve uma releitura feita pelo bávaro Werner Herzog, em 1979, com Klaus Kinski (1926-1991) como Orlok. Foi sucesso de público (com 1 milhão de ingressos vendidos em salas alemãs) e ganhou o prêmio de Contribuição Artística na Berlinale, dado à direção de arte do pintor Henning von Gierke. Essa adaptação deixava de lado as trocas feitas por Murnau e assumia os epítetos usados por Bram Stoker, apresentando-se como um diálogo transmidiático com a literatura do século XIX. Herzog perseguia um veio realista, aliás um dos mais próximos do real esturricado do cinema dos anos 1970, similar ao que William Friedkin (1935-2023) fez em “O Exorcista” (1973). 

Essa veia de realismo, certamente, cai por completo no filme que Eggers traz agora ao circuito, apoiado numa engenharia plástica refinadíssima (talvez a mais refinada de tudo o que brota de Hollywood na atual Oscar season), com destaque para os figurinos de Linda Muir. Signo de esplendor e excelência nesta temporada de prêmios cinéfilos, a fotografia é do californiano Jarin Blaschke, escudeiro do realizador em “A Bruxa” (2015), “O Farol” (Prêmio da Crítica em Cannes, em 2019) e “O Homem do Norte” (2022). Sua luz dionisíaca é um deslumbre. A citação dos três filmes, logo acima, é essencial não apenas pela presença de Blaschke, mas por trazerem a assinatura temática de Eggers à flor da pele. Nessa trinca de longas, ao largo de manifestações do Além e da explosão de barbáries, existe um interesse do diretor em explorar as entranhas cancerosas da masculinidade e suas metástases agressivas.

Existe um termo, “difficult men” (“homens difíceis” na tradução literal), cunhado pelo jornalista Brett Martin (em livro homônimo de 2013), usado para expressar a virilidade alquebrada dos anti-heróis da ficção audiovisual contemporânea, sobretudo o Walter White de “Breaking Bad” e o mafioso Tony de “A Família Soprano”. O masculino, em Eggers, é sempre espatifado, como se vê nessas figuras analisadas por Brett. 
Nos filmes de Eggers, os homens trafegam pela brutalidade guiados por instintos que já não lhes servem mais como um radar confiável. Além disso, a força feminina é o norte que almejam, mas é um norte que não decifram. Não por acaso, os dois homens de maior vulto no Nosferatu dele, Orlok e o corretor Thomas Hutter (batizad de Jonathan Harker por Stoker), são entes potentes, viris e plenos de retidão, mas se embaralham em suas vontades e arruínam-se ao seguir a sanha instintiva de suas naturezas. O monstro e o burguês pecam na mesma sina.

A criatura com cara de rato apresentada por Murnau em 1922 ganha contornos mais humanos na representação de agora de Orlok, galvanizada pela atuação febril de Bill Skarsgård. Há uma centelha diabólica em seu visual, mas ela se aproxima mais da monstruosidade charmosa criada por Francis Ford Coppola, com Gary Oldman, no Drácula de 1992. Thomas Hutter, por sua vez, conta um ator em estado de graça, Nicholas Hoult, que hoje brilha no streaming (na MAX) em Jurado n° 2. Diferentemente dos outros atores que encarnaram essa figura e suas variações (inclua aí Bruno Ganz e Keanu Reeves), Hoult dá um tônus heroico ao homem que vira presa de Orlok ao visitar seu castelo na Transilvânia.

Como em todas as versões de uma mitologia filtrada pelos escritos de Stoker e pelo filme de Murnau, Hutter sofre um calvário nas propriedades do Conde, tendo suas hemácias sugadas como alimento por um “desmorto” faminto. No que Orlok vê um retrato da companheira de sua vítima, Ellen (interpretada com visceralidade pela sempre surpreendente Lily-Rose Depp), ele decide largar seu lar e partir para Wisborg atrás da moça. Desde A Bruxa (produzido pelo brasileiro Rodrigo Teixeira), Eggers sempre desenha complexos perfis para as mulheres que têm protagonismo em suas películas. As visões sobrenaturais de Ellen garantem sua complexidade. Parte dela, pois existe uma inquietação existencial em sua forma de lidar com o querer – e com a tentação.

No Nosferatu de Herzog, Isabelle Adjani dava à tal persona um afã combativo, lutando por conta própria contra a presença do Mal místico em suas posses. No “Nosferatu” de Eggers, aposta-se num perfil fisicamente mais fragilizado de Ellen, que entra numa erupção interna ao se dar conta da atração que sente (e que gera) diante de Orlok. 

Igualmente sui generis é o recorte que Eggers faz do “inimigo” jurado dos vampiros, Abraham Van Helsing, um cientista, que ganha o nome de Professor Albin Eberhart von Franz no roteiro dessa refilmagem, com Willem Dafoe no papel. Parceiro do cineasta em O Farol e O Homem do Norte, o ator volta a desfilar (muito bem) suas proficiências (numerosas e imparáveis) ao desenhar um representante da racionalidade (pois o papel é filósofo por formação) com um jeitão de caubói à la Buffalo Bill, a exultar coragem. Os homens de Eggers são assim. São cheios de empáfia, porém são cientes do abismo que os aguarda. O abismo no belíssimo Nosferatu é nietzschiano, pois ele nos olha de volta, revelando as falésias morais da contemporaneidade e de tudo o que há de perpétuo na condição humana. Mais vampírico do que isso, impossível.  

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