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Meu Verão com Glória faz da perplexidade juvenil algo natural

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Em 1996, um filme francês colocou uma colherada de significado ao trabalho infantil em um set, para o bem e para o mal. Ponette é dirigido por Jacques Doillon, e mostra uma situação que no cinema estadunidense é tratado com certo lirismo. A pequena personagem-título é uma criança de cinco anos, que sobreviveu ao acidente de carro que matou sua mãe. Mais do que ‘o luto visto pelos olhos de uma criança’, o que temos aqui é a apropriação do olhar da protagonista, envolto em uma melancolia ininterrupta. A pequena Victoire Thivisol ganhou o prêmio de melhor atriz no Festival de Veneza, e abriu espaço para um gênero que nunca chegou a existir. Aqui em Meu Verão com Glória, as mudanças do tratamento são uma gangorra para a protagonista, com rasgos de alegria esfuziante intercalados com uma tristeza de rasgar o coração. 

Aqui, o clima não é introspectivo e tristonho quanto na produção de 30 anos atrás. Em determinada proporção até, Meu Verão com Glória abusa do reflexo luminoso no qual se vale na captação da luz e na impressão fotográfica para contrabalançar o que teria de obscuro no seu tratamento. As protagonistas da produção parecem sempre estar prestes a um desfiladeiro emocional, em diferentes proporções mas na intensidade proporcional a suas idades disparatadas. Mas o que desequilibra de maneira solar a identidade do filme é o tanto de amor que soa impresso naquelas existências, e no tanto de desamor que o ser humano precisa lidar para avançar em uma espécie de competição não-formal. 

A começar por Cleo e Glória, mas todos os outros personagens do filme (inclusive quem ainda não nasceu!) pede por um pouco de amor, e se ressente do amor que é destinado a outrem. Ou seja, há uma competição em cena, também de maneira não assumida, por um quinhão de atenção emocional que se sente em débito. Meu Verão com Glória, dessa maneira, não descobre uma fórmula nova na arte de contar histórias, e é exatamente na pureza de sua simplicidade que descortina-se um desejo inequívoco do espectador em seu doar a cada um dos tipos em cena. É natural que encontremos a identificação ali de diferentes aspectos, mas que também seja compreensível que, mesmo diante de diferentes atitudes, estão todos em cena no compromisso particular de amar e ser amado. 

O estudo de personagem que é feito a partir de suas protagonistas em momentos distintos da vida não tem privilégio – temos duas personagens femininas que lidam com perdas em sequência, e se encontram em uma específica, as unindo no início da narrativa que a diretora e roteirista Marie Amachoukeli compreende. Cleo perdeu a mãe faz muito tempo, Glória tem esse mesmo baque na idade adulta, e ambas se encontram nesse conforto mútuo da capacidade de doação de afeto. Meu Verão com Glória mostra que ambas não conseguem viver uma sem a outra, mas que precisarão aprender porque seus universos particulares são, de alguma maneira, feitos para serem desfeitos.

A pureza de sentimentos é um dado importante para Meu Verão com Glória, e talvez nasça da necessidade de explicitar isso as inserções animadas feitas pelo filme. Além de não rasurar a obra com flashbacks explicativos além da narrativa corrente, o filme é pulverizado pelo lirismo que essas imagens do passado e/ou do subconsciente das personagens ao acessar tais convenções. Nesse sentido, o que Amachoukeli também busca é uma constante balança de inserções, com alguma dramaticidade excessiva sendo minada por cenas posteriores repletas de luz e vibração infantil. Daí o sinal de seu desfecho para o corte seco, após o mergulho sincero na realidade futura – é tempo de crescer, ainda que o olhar para o passado ainda seja necessário. A vida está no caminho a frente. 

Impávidas acima do drama, as performances de Ilça Moreno (no personagem-título) mas principalmente de Louise Mauroy-Panzani são as responsáveis por nos trazer até Meu Verão com Glória. Enquanto a mais velha expõe toda sua contradição entre o amor nascido longe de casa e a necessidade de se reconectar com os laços de sangue e sua terra natal, Louise nos compele às mesmas perguntas que Thivisol nos apresentou há três décadas. Como dirigir uma criança com um campo de complexidade tão grande como é apresentado aqui? Como blindar a vivência infantil de situações psicológicas tão arraigadas, suscetíveis a identificação sem limites? Sua entrega como Cleo pode não contemplar as respostas necessárias para o espanto que ela representa enquanto atriz, mas é quase inteiramente do seu olhar, da sua perplexidade juvenil, da sua efusividade natural, que saímos sem palavras, e em estado de total arrebatamento. 

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