- Publicidade -

“O Estrangeiro” revista Albert Camus à luz de angústias contemporâneas

Publicado em:

Enquanto cunhava alertas como “Toda a infelicidade dos homens provém da esperança”, Albert Camus (1913-1960) era chamado de “o William Holden da Filosofia”. O apelido fazia referência ao astro de “Inferno n°17” (1953), signo de virilidade e beleza masculina, numa alfinetada da intelectualidade europeia, que se incomodava com a ferocidade dos escritos de um pensador cujo rosto apolíneo lembrava o do galã de Hollywood. Já em sua estreia nas Letras, no fim dos anos 1930, Camus demonstrou habilidade em condensar ideias de cânones da ontologia (como Santo Agostinho) numa prosa ensaística, bem-sucedida já em sua estreia no mercado editorial, sobretudo ao publicar “L’Envers et l’Endroit” (“O Avesso e o Direito”), em 1937. Não tardaria a desbravar a tecnologia literária do romance, registro no qual se instalou com “L’Étranger” (“O Estrangeiro”, de 1942), hoje reinventado como espetáculo teatral numa meticulosa atuação de Guilherme Leme Garcia. 

No mesmo ano em que o escritor franco-argelino lançou seu livro mais adorado, centrado nos bastidores (existenciais) da morte de um árabe numa praia, ele publicou um tratado reativo às dinâmicas do absurdo do mundo. Chamava-se “O Mito de Sísifo” (também de 1942) e nele se lê: “Antes, a questão era descobrir se a vida precisava de ter algum significado para ser vivida. Agora, ao contrário, ficou evidente que ela será vivida melhor se não tiver significado”. É nessa trilha que corre a montagem estrelada por Leme Garcia, sob a (firme) direção de Vera Holtz. 

Coroado com o prêmio Nobel de Literatura em 1957, Camus apostou numa espécie de estética da revolta, defendendo a prática de luta (ainda que pelas palavras) como um desafio à falta de sentido e à inércia da existência. Nesse caminho, recusou filiações a correntes ideológicas (até ao existencialismo do qual costuma ser aproximado), e rejeitou ideologias, inclusive a da fé, o que se expressa na encenação de “O Estrangeiro” no CCBB, numa frase: “Não quero gastar o pouco tempo que tenho com Deus”.   

Há 15 anos, Vera e Leme Garcia adentraram pelo patrimônio filosófico de Camus a fim de levar “O Estrangeiro” aos palcos. Extraíram de suas páginas uma peça memorável, que elevava seu ator a um patamar de excelência nas artes cênicas, demarcado pelo apuro e pela retidão. 

Na versão do fim da década de 2000 de “O Estrangeiro” , Leme Garcia vestia um terno, enquanto estruturava, pelo relato oral, o percurso de um sujeito chamado Mersault, do dia a dia no escritório onde é funcionário ao cárcere, sob a acusação de assassinato. Cada frase, transbordava suas sensações e sua misantropia. A adaptação teatral de então conversava de longe com a dinâmica politizada do longa-metragem “Lo Straniero” (1967), uma versão do best-seller de Camus rodada pelo titã Luchino Visconti (1906-1976), com Marcello Mastroianni (1924-1996) de Mersault.

No cinema, numa adaptação indicada ao Globo de Ouro e ao Leão dourado de Veneza, Visconti acentuava os vetores políticos no mal-estar que levava Mersault a matar. Vera e Leme Garcia não deixavam de abalroar essa vertente (associada à xenofobia e à intolerância colonial), mas alargavam sua abordagem, tornando a ressaca de seu protagonista mais universal. Qualquer um, neste mundo de desamparos pode ser Mersault, sobretudo na forma como a Humanidade, enojada pelo bem-estar alheio, escanteia as benesses e as urgências do amor e do altruísmo. Tal perspectiva se manteve na revisão da peça, hoje no CCBB.     

Apesar de sua manutenção, a dinâmica de encenação de 2025 sofreu alterações em relação ao que se fez antes, sob o delicado desenho de luz de Aline Santini, regado a contrastes, numa inteligente apropriação do chiaroscuro. A adaptação do livro, assinada por Morten Kirskov, na tradução de Liane Lazoski, processa-se a partir dos hiatos que Leme Garcia esgarça entre cirúrgicos silêncios e rigorosas entonações que gravitam da serenidade à aspereza plena. Mersault não é o que pode ser classificado como um sujeito de extremos, mas tem atitudes que confrontam calmaria e tempestade. O que dizer de alguém que mata outrem tomado pela inconstância de um raio de sol nos olhos? O que dizer sobre os impulsos mais concretos que estão sob esse tal raio?        

Muitas vezes associado a Camus pela amizade (e pelas divergências) que tiveram, Jean-Paul Sartre (1905-1980), outro ás da Filosofia, costumava dizer que “o indivíduo é um existente que nasce sem motivo, dura por fraqueza e morre por acaso”. É o que escreve em textos como “A Náusea” (1938), flagrando uma espécie de impasse essencial e estrutural na condição humana, ciente de que, como afirmou seu antecessor Immanuel Kant (1724-1804), a ideia de alma é tão fugidia que não cabe em imperativo categórico algum. De certa forma, Mersault sofre desse refluxo sartriano, ao ser atropelado pelo torvelinho das inquietudes.     

Durante uma estadia no litoral, sob a hipótese de trocar a Argélia por Paris, ele acaba entrando numa briga (tola), para ajudar um amigo, e mata o sujeito, identificado como árabe, numa demarcação que Camus faz do ranço xenófobo do colonialismo do Velo Mundo. Após essa brutalidade, Mersault é levado à prisão e vai a julgamento. 

O agravante de seu caso, contudo, não parece ser o assassínio em si, mas, sim, o fato de, dias antes do crime, ele ter perdido a mãe (idosa) e não ter chorado com a perda. Aos olhos da promotoria, a ausência de prato naquela orfandade culpabiliza suas ações. Afinal, um homem que não chora diante da mãe morta não demonstra empatia.  Ao criar Mersault, sob essas condições, Camus escreveu: “o herói do meu livro é condenado porque não joga o jogo”. Vera e Leme Garcia se apropriam dessa dimensão e, a partir dela, dão a “O Estrangeiro” uma vertiginosa leitura, sintonizada com pleitos da contemporaneidade, que usam o discurso empático não como dialética inclusiva mas, por vezes, como retórica da exclusão. Se a empatia não se estende a tudo, sem senões, que sentido humanista ela carrega? 

Se Mersault está fadado ao fim não por ter matado alguém, mas, sim, por não ter expressado dor, sua condenação (e potencial execução) farão justiça a quê? A quem? Nesse arrazoado de perguntas, “O Estrangeiro” é uma peça de contágio, agoniante, reforça o lugar do Teatro do CCBB como arena ideal para investigações que nos desalentam – e, por isso mesmo, enriquecem nosso olhar, quanto Leme Garcia adula nossos tímpanos com uma modulação vocal que começa melíflua e se torna rascante a cada nova sílaba. É uma atuação que devasta numa acuidade matemática, num dois mais dois que bagunça nossas aritméticas geopolíticas e afetivas. 

Saiba mais sobre a peça!

Mais Notícias

Nossas Redes

2,459FansGostar
216SeguidoresSeguir
125InscritosInscrever
4.310 Seguidores
Seguir
- Publicidade -