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Vitória: Andrucha Waddington une tensão, sociologia e Fernanda Montenegro

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Cria de um tempo em que o videoclipe era a maior diversão, Andrucha Waddington tem em seu currículo documentários que traziam a música, sobretudo o canto, em sua argamassa dramatúrgica, como “Viva São João!” (2002) e “Pedrinha de Aruanda” (2007). Sua gênese na ficção, em metragem longa, foi delineada pela luz de seu diretor de fotografia, Breno Silveira (1964-2022), que se sagrou como realizador há vinte anos, ao lançar “2 Filhos de Francisco” (que tinha aves canoras da canção sertaneja em sua medula). Andrucha primeiro rodou “Gêmeas”, de 1998, com (sua atual companheira) Fernanda Torres, que investigava os perigos de uma metrópole numa dinâmica de thriller. Na sequência, fez “Eu, Tu, Eles”, que lhe valeu menção honrosa na mostra Un Certain Regard de Cannes, há 25 anos. Tem um pedacinho de cada uma dessas experiências supracitadas – inclusive uma influência saudosa de Breno – na essência de “Vitória”, o exercício de direção mais meticuloso do cineasta. 

É de se estranhar o fato de que, nas sequências iniciais, haja ausência total de uma trilha (ainda que incidental) servindo de tapeçaria às andanças da massagista Josefina, conhecida só como Dona Nina (papel da imortal da ABL Fernanda Montenegro), pelas ruas do Rio. Um acordezinho era o mínimo a se esperar de quem fez o Brasil cantar (e dançar) ao som do hit “Esperando na Janela”, de Gil, na trilha da love story de título pronominal com Regina Casé (“Eu, Tu, Eles”). A estranheza inicial se perpetua “Vitória” adentro, deixando que ruídos de uma cidade frenética, em especial o barulho de pipocos de 9MM e traçados de AR15, embalem o que se vê. 

Hora ou outra rola uma evocação à “Dança da Motinha” e aos “Popozudas” afins do Funk local do início dos anos 2000, e, numa sequência deslumbrante, um som pra se curtir a dois embala uma boate do Rio. O resto é silêncio… ou quase, pois, por dentro, as placas tectônicas afetivas de Dona Nina fazem fricção… numa implosão avassaladora. Dela brota barulho.

Vitória

Até o terremoto de sua indignação – em relação à violência do tráfico no Rio – tremer terras (e telas), a partir de uma região chamada pelo filme de Ladeira da Misericórdia, nota-se a câmera a se mover de forma cirúrgica. Os movimentos têm uma precisão algébrica, incomum ao estilo comumente mais leve e arejado de Andrucha (vide “Casa de Areia”). O represamento musical e os enquadramentos rigorosos expõem sinais de maturidade de um cineasta há tempos dedicado à televisão (em seriados e minisséries como “Fim) e sugerem um vínculo (de solidez) com as experiências documentais de seu passado.

Seus filmes sobre (e com) Bethânia e Gil eram também filmes sobre as arenas onde eles se apresentavam, eram abordagens cartográficas de ídolos da MPB em ação. “Vitória” é a cartografia de um Rio sem amparo legal. Lula Cerri fotografa essa paisagem sem excessos de cor, enquadrando o apartamento de Nina com pouca luz, quase numa atmosfera bruxuleante.

Ela precisa de pouco para ser feliz dentro dele. Só carece de seus LPs e de suas xícaras de café, a julgar pelo desenho de personagem estruturado pelo delicado roteiro de Paula Fiúza (egressa da não ficção também), que teve colaborações de seu parceiro, Breno. Era ele o diretor original de “Vitória”. Depois de sua morte, seu amigo e colega de set, Andrucha, assumiu o posto, na tarefa de arrancar de um titã, Fernandona (sua sogra), uma atuação calcada em sufocos e engasgos.

Nina sufocou muito no tanto que a engasgou, sobretudo perdas inerentes à relação abusiva com patrões de outrora. Conseguiu comprar um apezinho aprumadinho pra si com a poupança suada de anos de labuta e humilhação. Por isso, agarra-se tanto a seu lar, mesmo quando ele se encontra na mira de balas perdidas na troca de chumbo entre bandidos e uma banda da PM nada lícita. Sua história é um espelho ficcional dos fatos vividos por Joana da Paz, aposentada que desmascarou uma quadrilha de traficantes e policiais corruptos, na Ladeira das Tabajaras, na Zona Sul do Rio, com filmagens em fitas VHS.

Incluída no Serviço de Proteção à Testemunha, Joana foi apelidada de “Vitória” para se salvar da investida de malfeitores. Teve sua identidade mantida em sigilo por dezessete anos, até morrer em 2023, após o término das filmagens do longa.

Tal qual se deu com Joana, o calvário de Nina envolve o videotape, um suporte que marcou a formação de Andrucha, como espectador e diretor, e inspirou cults tipo “Videodrome” (1983), de David Cronenberg, ou o “sexo, mentiras e videotape” (Palma de Ouro de 1989), de Steven Soderbergh. VHS é um signo de registro em dispositivos analógicos, é uma metáfora do lastro e, com ele, da memória que se cristaliza em objetos, da memória materializada. Nina é uma espécie de invólucro material de recordações de um Brasil de agressividades, mas também de belezas. Olha para o entorno de seu prédio com a lembrança da mata que lá existia. Fala dessa mata nos depoimentos que dá ao jornalista Flávio Godoy, figura que arranca de Alan Rocha um desempenho cirúrgico, sem arroubos, mas calcado de emoção. 

Aliás, Alan brilha em cada plano que tem para si no papel de Godoy. O repórter é a primeira pessoa que dá atenção ao empenho de Nina para denunciar a guerra em seu perímetro residencial, usando fitas que gravou das frestas de sua persiana como provas de que o RJ virou Saigon. Caberá a ele servir como um vetor dinâmico para que ela empreenda a jornada que fará dela uma heroína. Como é bonito ver um filme sobre empenhos heroicos num cinema brasileiro que aprendeu a valorizar essa condição (o sacrifício em prol do Bem) depois de “Ainda Estou Aqui”, do qual nossa estrela maior também participa. 

A maneira como Andrucha põe o heroísmo em prática foge de coloridos hollywoodianos, numa veia sociológica que põe o etarismo e os conflitos de classe em foco. Lembra “Lola” (2009), joia do filipino Brillante Mendoza, indicada ao Leão de Ouro, assim como lembra (pela bravura de Nina) o esquecido “Aleksandra” (2007), do russo Aleksandr Sokurov. “Vitória” é como os tratados cinemáticos sobre corpos femininos de cabelos agrisalhados pelo Tempo em fluxo por espaços no qual não são bem-vindos. Nina é malquista em certos cantos, pois incomoda. Causa angústia sobretudo no Major Messias, oficial que Marcio Ricciardi estrutura (brilhantemente) como um vilão, digno dos criminosos fardados que davam trabalho para o Rambo nos longas dos anos 1980. É ruim como o militar eslavo de Steven Berkoff em “Rambo II – A Missão”, numa ruindade fleumática. 

O incômodo que a justiceira encarnada por Fernanda Montenegro dá a Messias é proporcional (só que num extremo inverso) ao bem que faz à cabeleleira Bibiana (Linn da Quebrada) e ao guri Marcinho (Thawan Lucas). Essa dupla integra o rol de satélites que o script de Paula Fiúza espalha pelo caminho de Nina, no empenho de erigir uma Comédia Humana da Babel carioca. Nela, muitos falam e ninguém se entende. Pelo menos a polícia finge não entender. Nesse oásis de desentendimentos e de desatenções, Nina sabe olhar o próximo, sabe amparar quem precisa, sabe tentar.

 Com a ajuda de uma edição em estado de graça de Sérgio Mekler, Andrucha conta a saga de “Vitória” desafiando CNTPs, num suspense sufocante, mas regado a empatia. Treinou bem sua musculatura para a ação na série e no filme “Sob Pressão” e aplica o que colheu neles num longa precioso, que atesta o quanto sofisticou seu ferramental dramatúrgico. 

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