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As Aventuras de uma Francesa na Coreia

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É muito triste observar que um cineasta tão prolífico ao esbarrar na excelência com tanta frequência, tenha amealhado um público fiel no Brasil, que não apenas demonstra interesse por sua obra como consome qualquer material que ele entregue, e ainda assim o circuito brasileiro tenha escolhido abrir mão de sua marca. Toda essa citação acima diz respeito a Hong Sang-soo, o mais frequente cineasta sul-coreano das duas últimas décadas, que une suas infindáveis qualidades com uma profusão de trabalho quase assustadora. As Aventuras de uma Francesa na Coreia não é seu último filme, mas trata-se de mais uma obra rodeada de grandes discussões em torno da construção narrativa como pólo de entendimento entre os seres, ou não. 

O motivo pelo qual esse filme específico estreou sem muita burocracia no Brasil é o protagonismo de Isabelle Huppert, que promove a obra à revelia do enredo. Uma das atrizes mais queridas no país, a veterana estrela francesa então consegue fazer com que a voz de Sang-soo volte a encontrar respaldo entre as distribuidoras para tornar a comprá-lo sem precisar de que uma ocidental amplie as discussões a uma obra que prescinde esse tipo de estratégia. As Aventuras de uma Francesa na Coreia é a terceira colaboração entre cineasta e atriz, e sinto que esse é o mais maduro ao lidar com a protagonista. Após A Visitante Francesa A Câmera de Claire, essa dupla mostra que precisa se juntar mais, nem que seja para Huppert voltar a injetar ânimo nas relações das pessoas com Sang-soo. 

No mais, trata-se de um veículo tradicional para o cineasta, mas que não deixa de surpreender com o tratamento regido aqui. Essa personagem-título defendida por Huppert é o fio condutor da vez, como o título em português define quase muito bem porque talvez falte qualquer coisa que lembre uma aventura. A não ser que olhemos o que é proposto pelo seu autor como uma jornada rumo a descobertas menos óbvias a respeito da aproximação das pessoas com suas deficiências do olhar. A chegada de Iris à vida dos outros personagens rememora às múltiplas descobertas que ninguém em cena tem muita vontade de fazer, mas que não estão mais escondidas, diante do choque que tal protagonista promove em cena. E isso é verdadeiramente uma percepção que somente esse cineasta na atualidade tem para aplicar sobre o mundo externo; arrancar, com ferocidade ou suposta candura, máscaras sociais que pedem para cair. 

Um dos filmes mais divertidos de Sang-soo, As Aventuras de uma Francesa na Coreia consegue ser duas coisas absolutamente distintas, uma dentro de sua órbita particular e outra na absorção do espectador. Se pode ser vendido como um drama venal com o qual os personagens não estão dispostos a lidar, subjetivamente também é uma comédia das mais engraçadas, onde uma tradutora de línguas se infiltra em alguns núcleos sociais para revelar hipocrisias. Passado em menos de 24 horas, o filme se resume a três encontros e mostra o desencadeamento de processos familiares falidos, à beira da dissolução ou no início do desencanto. Uma filha entrando em contato com o lado menos heroico do pai; um casal cujo rompimento de desenha como uma possibilidade deflagrada; um filho percebendo a prisão na qual vive, prestes a ruir. 

O tônus do humor aqui é não apenas associado ao teor do que é dito por Huppert, mas também pela forma como essa grande atriz se coloca em cena, com a coragem sob a qual deposita suas contradições. De maneira despudorada, ela representa uma espécie de oráculo debochado que não se importa muito com as consequências de suas ações ou verbalizações. Com leveza, As Aventuras de uma Francesa na Coreia suscita alguns debates tão sutis quanto poderosos, enquanto tenta retificar os códigos de linguagem ao repeti-los, e mais uma vez apresentar uma situação-base que se julga recorrentes em sua filmografia, quando uma vez mais estamos diante de uma tentativa de nos mostrar o poder do discurso e das ferramentas que o provocam. 

Em rápidos 90 minutos, As Aventuras de uma Francesa na Coreia ganhou o Grande Prêmio do Júri do Festival de Berlim apostando mais uma vez no poder corrosivo que as deturpações decorrentes de uma narrativa podem desmontar uma estrutura de conhecimento. Nenhuma tentativa mais densa é feita, quando na verdade todos os caminhos do filme não levam à densidade, e sim de encontrar a maneira mais aparentemente descompromissada de provar um ponto retórico. Mais uma vez ele o faz de maneira brilhante, sem deixar de empurrar goela abaixo nenhuma das questões que Sang-soo faz cruciais em sua obra. A maneira mais elaborada de contar uma história é apostando nas contradições não apenas dos seres humanos entre si, como principalmente o que torna contraditória a compreensão entre os mesmos. 

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