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“AO VIVO [dentro da cabeça de alguém]” é um estudo sobre as urgências do Brasil

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Existe algo de “Divertida Mente” (“Inside Out”) no processo dramatúrgico (e cênico) da peça “AO VIVO [dentro da cabeça de alguém]”, que se faz entender pelo título. Como na franquia da Pixar/Disney, somos levados a ver o que se passa no cérebro de alguém. No cinema, Alegria é heroína e a Tristezinha, uma coadjuvante a ser salva de seus próprios grilhões. No espetáculo de Marcio Abreu, esse grau de maniqueísmo não é bem-vindo, o que elimina a dinâmica do “esse é bom”, “esse é mau”. No entanto, a operação teatral que representa a memória como um músculo da imaginação impede que lembrança vire saudade. Como se ouve no palco: “O Tempo não é um bicho que anda… e anda!… é uma espiral”. Assim sendo, diferentemente da animação hollywoodiana, a meta da peça não é compartimentar emoções, é borrar fronteiras. Daí tudo se encenar como exercício, com direito a show, com vídeo (em projeções impecáveis) com saliva que, qual água benta, afasta os vampiros de nosso passado.  

Roendo roupas dos reis da Rússia, dos czares aos cossacos, o teatro brasileiro aprendeu: “Errar é humano: mais humano ainda é atribuir o erro aos outros”. O alerta veio de Tchekhov (1860-1904), ali mais ou menos na mesma época em que escreveu “Quando as pessoas são felizes, não reparam se é inverno ou verão”. Flagra-se essa verve acusatória da sociedade sobretudo na marola da inércia, tema por excelência da dramaturgia tchekhoviana, que, à luz da (geo)política deste nosso país, pode ser associada a(o delito da) “isenção”, ou palavras afins de estagnação ou alienação. Na contramão delas, à luz das dicas dadas por escritos do autor de “Tio Vanya”, uma equação estética como “AO VIVO [dentro da cabeça de alguém]” prefere agir (ou reagir), na forma de um (quase) jogral. 

O “Divertida Mente” de Marcio Abreu põe uma trupe (azeitada) a revezar estudos de cena, de palavra, de gesto. Escrita em minúsculo, a companhia brasileira de teatro dirigida por ele faz arte no maiúsculo, trabalhando o risco em caixa alta. 

Em “AO VIVO [dentro da cabeça de alguém]”, tudo que faz é erguido sob resquícios de “A Gaivota”, um dos pilares do bardo eslavo supracitado. A evocação dele vem não só de sua essencialidade como farol para o teatro, mas por urgência. Vivemos um período de polarização, no qual o verbo “cancelar” é uma prática de… ou melhor, DO… Poder. Atento ao período, composto (de multiplicidades), a peça de Marcio Abreu em cartaz no Carlos Gomes inclui em vez de excluir, sem tratar sua estrela mais famosa, Renata Sorrah (por mais imensa que ela seja), com reverência de diva. Nesse projeto, a Liv Ullmann do Brasil é parte de um time. Um time onde todos brilham.   

A premissa de “AO VIVO [dentro da cabeça de alguém]” é: buscar recordações na mente de uma mulher (no caso, uma atriz com vasta experiência) acerca de um projeto teatral, com lastros em Tchekhov. A prática: fazer dessa imersão um eixo para que imagens recentes da História do Brasil e do mundo, guardadas como fatos ou como vivências na tal mente, desfilem em cena, para serem ressignificadas. O dispositivo: um rewind, um rebobinar de fitas, um remorar ora individual, ora coletivo. Por isso, todos em cena se equidistam e se complementam. É patota, é trupe, é Grupo, no caso.       

Ao lado de Renata, estão Bárbara Arakaki, Bixarte (em notável desempenho), Rodrigo Bolzan e (um mesmerizante) Rafael Bacelar, que põe a plateia no bolso numa sequência de bate-cabelo. Juntos e misturados, sob espasmos de Tchekhov, essa turma fala, dança, performa no esforço de botar pra fora resíduos de uma mente que viu o Brasil sair da ditadura e deixar acontecer um Golpe (2016), pouco antes de se confinar pela covid-19 e almejar uma nova democracia. 

Revemos situações que pararam esta pátria e, às vezes, todo este planeta, ao mesmo tempo que cada integrante da companhia passa em revista um acontecido pessoal, um som ou uma fúria, denunciado racismos, transfobias, preconceitos mil. São lembranças. Lembranças são o éter da mente. O éter não é sólido, logo, não desmancha no ar (como Marx nos ensinou). Nem a intolerância.

A pesquisa que mobiliza Marcio Abreu vem de um trabalho investigativo dele com Nadja Naira (a responsável pela estonteante iluminação da cena), Cássia Damasceno e José Maria. Felipe Storino assegura o pancadão na direção musical e na trilha sonora original desse “Dogville” subtropical no qual a direção videográfica conta com a potência lúdica de Batman Zavareze em ebulição plena. 

Saiba mais sobre a peça!

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