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“O Dia Em Que Raptaram o Papa” traz colorido de ‘Os Simpsons’ em seu Homer tragicômico

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Sob a luz desenhada por Rogério Wiltgen, o cenário criado por José Dias para a montagem de “O Dia Em Que Raptaram o Papa” lembra as casinhas de Springfield, a terra fictícia do desenho “Os Simpsons”, que se faz viva no imaginário da plateia também pelo colorido cartunístico dos figurinos de Ronald Teixeira e Pedro Stanford. Aliás, a ação do espetáculo se localiza numa Nova York perfumada pelo napalm da Guerra do Vietnã. Nela, não se escuta soar nenhum celular, nem se vê dancinha de TikTok, tampouco vemos o povo se agrilhoar nos ferros dos algoritmos digitais. Não há Inteligência Artificial ao alcance de um download (substantivo desconhecido para uma América possivelmente dos anos 1970) ali. Tem só fala. E, certamente, escuta. 

"O dia em que raptaram o Papa"
Foto: Guga Melgar

Não se comenta data, mas a primeira encarnação do texto (mundialmente encenado) de João Estevão Weiner Bethencourt (1924 – 2006) ocorreu na Copacabana de 1972. O clima “That ’70s Show” está no ar na releitura dele, pilotada pela filha de João, Cristina Bethencourt. Ouve-se rádio de pilha e adota-se a televisão como oráculo na trama, que, pelo título, sugere oportuna conexão com a eleição papal exigida do Vaticano com a morte do sacerdote argentino Jorge Mario Bergoglio (1936-2025), o Papa Francisco, substituído por Robert Francis Prevost, o Leão XIV. 

Em tempos de Conclave, o filme de Edwrad Berger, de volta ao circuito por conta da votação responsável pela escolha de Prevost, o retorno de “O Dia Em Que Raptaram o Papa” aos palcos soa como uma resposta do zeitgeist (“o espírito do tempo”) às demandas da História, ainda que não seja uma exploração dos fatos recentes ligados à alta cúpula da Igreja Católica. Longe disso! Trata-se (mais) de uma reação das artes cênicas à demanda pelo riso numa época de patrulhas, ativadas por aparelhos ideológicos (até os de estado), que cercearam a liberdade da comédia. 

A alternativa de retomar uma crônica de costumes (de ontem, que refletem o hoje) salpicada de humor, mas pavimentada por um cimento político crítico ao belicismo, garante salvaguarda (e boas-vindas) ao texto de Bethencourt. Seu “Bonifácio Bilhões”, de 1975, é outra iguaria que traduz (à perfeição) o mundo pós Minions. Tá na hora de ela voltar, sobretudo por Cristina estar com a potência de encenação ligada no 220 (da destreza e da perspicácia).       

“O Dia Em Que Raptaram o Papa” consegue fazer o cruzamento de Os Simpsons com Dr. Fantástico, de Stanley Kubrick, com direito a um Homer pra chamar de seu: o chofer de praça Samuel Leibowitz, uma figura tragicômica que Claudio Mendes puxa, estica, solta e enrola numa atuação coruscante. O José Dias do filmaço Capitu e o Capítulo (2021) tem um desempenho hilário (e maduro), calcado em cicatrizes e vulnerabilidades que expõem fraturas de guerra.  

A perda de um filho (seu primogênito) nas moitas de Saigon fez desse taxista um alarme vivo, a ser disparado a qualquer sinal de brutalidade. Ele é um Cavaleiro da Triste Figura que almeja ver a Terra dar as mãos e largar as bombas, num quixotesco anseio por sossego. Sua NY é barra pesada, mas ela é só a metonímia de toda a bestialidade armada que sangrava o planeta então, nos mil novecentos e 70 e tals. Cristina é hábil pacas para conseguir usar o que se viveu outrora – sobretudo na cultura do medo – como um espelho do que se vive no 2025 em que a perda do Papa Francisco não ofuscou os sofrimentos na Ucrânia… na Palestina… nas zonas de milícia do Rio de Janeiro. 

Essa sanha universalizante na escrita de Bethencourt ganha grifo num dia extraordinário para a rotina de Samuel, em que, movido por impulsos idealistas, ele aproveita o fato de ter Vossa Santidade, o Papa (Giuseppe Oristanio), em seu banco de passageiros, e decide sequestrar o líder católico. Elisa Pinheiro, a Goldie Hawn do teatro carioca, refestela-se na invenção ao viver a mulher de Samuel, uma Marge Simpson de colher de pau na mão. Seus olhos marejados ilustram sua verdade: a perplexidade. Ela sabe que o marido se excedeu, mas, de alguma forma, concorda que seu gesto é uma forma de conclamar o planeta a soltar a pomba da paz. Oxalá ele seja ouvido. 

Em “O Dia Em Que Raptaram o Papa”, filha e filho de Samuel que sobreviveram longe dos fronts (Beatriz Linhales e Samuel Valladares) são testemunhas da estadia forçada do Papa em seu lar, estrutura por Oristanio numa calmaria sábia, na serenidade dos que entendem que o slogan “Faça amor, não faça guerra” não deve se resumir à publicidade. Um Gustavo Ottoni mais contido do que seu (brilhantismo) habitual tem seu quinhão de holofotes como um rabino com jeitão de Hortelino nesse “Looney Tunes” pacifista. Ribaltas se acendem também para a estatelante participação de Nando Cunha (o pai selvagem do longa “Nosso Sonho”) no papel do cardeal que negocia o armistício com Samuel, usando a retórica do Cristo para impor ao Papa verdades que são demasiadamente humanas – portanto, nada de divino têm.

Com as vozes de Duaia Assumpção, Lucas Barbosa e José Beltrão nas locuções de offs, Cristina dirige “O Dia Em Que Raptaram o Papa” com acurada percepção para as brechas cômicas e os precipícios morais que fundamentaram a existência da dramaturgia de seu pai. Desde a estreia da montagem original, a peça virou uma coqueluche mundial, encenada em dezenas de países, como Suíça, Israel, Canadá, Estados Unidos, Alemanha, Áustria, França e Escandinávia. 

O que se ri com ela agora, na mirada de Cristina, desopila poros e mentes. No entanto, o soco que o desfecho nos dá assegura vitória por nocaute à aspereza. O The End não é áspero por opção ou vocação, mas por reflexo do que se passa ao nosso redor.  

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